Vivemos na saúde um período estranho, em que à ânsia de mudanças que ponham o SNS no encalço das necessidades e expetativas, não só dos doentes mas também dos profissionais, parece não haver registo de medidas efetivamente mobilizadoras e que reformem o modo como o SNS deve responder.
Na passada semana tivemos a publicação de um despacho da ministra da saúde que tenta abrir caminho a algumas dessas expetativas, desta vez do lado dos profissionais. Cria grupos de trabalho para um conjunto de temas realmente importantes, como a sistematização de carreiras específicas para a saúde, nova visão sobre remunerações ou a proteção dos profissionais com melhores condições de trabalho. São temas fortes para os quais há já variadíssimas propostas e que agora convém compilar para definir opções. Mais cedo do que tarde deveremos ter soluções e a fórmula burocrática adotada poderá atrasar tudo isto de forma irremediável.
De facto, há matérias a exigir decisões urgentes, de um governo maioritário sem peias negociais de qualquer dos lados do espectro político. Vamos a algumas delas:
- Dedicação plena
O governo deve operacionalizar o conceito o quanto antes, definindo o que significa, que regras de enquadramento serão consubstanciadas, que modelos remuneratórios serão criados, que estímulos à produção e à qualidade estão no horizonte. Ao adiar a abertura da caixa de pandora vai minando o capital de confiança que os profissionais e os cidadãos depositaram na ideia.
- Falta de médicos
Muitos hospitais e cidadãos se queixam de falta de médicos (especialistas hospitalares ou de medicina geral e familiar). Os dados são objetivos e basta olharmos para as centenas de milhões de euros gastos com empresas de trabalho médico e para o volume obsceno de horas extraordinárias pagas nos hospitais, para percebermos a dimensão do problema. Incentivar os médicos dos quadros a fazer um volume estratosférico de horas extraordinárias é um remédio revelador de impotência para resolver o problema. Sabemos muito bem onde estão os problemas: avalanche de urgências nos hospitais que deveriam ser vistas em cuidados de saúde primários (que não funcionam) e escassez de oferta de trabalho médico. Quais são as soluções? Reformar os cuidados primários e exigir compromissos de volume e qualidade, por um lado, abrir mais vagas nas faculdades de medicina e/ou abrir mais faculdades se necessário.
Importa, todavia, referir que o trabalho médico exige uma análise mais profunda, inserida numa perspetiva integrada dentro do sistema de saúde. O SNS dispõe de cerca de 30 mil médicos, num conjunto de cerca de 42 mil profissionais em efetivo exercício de funções. Ou seja, cerca de 72% dos médicos desempenha funções no SNS, sendo que uma grande parte trabalha também no setor privado e/ou social. Este modelo de trabalho é ancestral e vem do tempo em que a prática da medicina era predominantemente liberal e os hospitais públicos ou das misericórdias pouco pagavam aos médicos. Eram espaços de formação e de experiencia, e davam prestígio aos médicos que os frequentavam. O estatuto, económico e social, era adquirido na medicina liberal. Tudo, entretanto, mudou, e hoje as remunerações médicas no SNS são matéria central nas reivindicações dos profissionais. Os grupos privados pagam ao ato ou por incentivos e estabelecem métricas de avaliação do desempenho médico mais exigentes que o empregador público, que conserva o modelo de remuneração burocrático e iniquo do passado. Daqui resulta mais atratividade do setor privado para a qual o SNS continua a não ter armas de combate. Os resultados estão à vista. E todas as questões que se prendem com desmotivação dos médicos, cansaço e falta de perspetivas de evolução profissional, têm a ver com este universo e não apenas com o trabalho público em exclusivo.
- Assimetrias na distribuição dos médicos
Os governos do PS têm vindo desde 2016 a tentar melhorar a equidade na distribuição dos médicos pelo território nacional. O conceito de territórios de baixa densidade permitiu criar incentivos especiais para a colocação de médicos jovens nesses territórios, mas até agora sem resultados palpáveis. Os jovens médicos preferem aguardar vagas nos grandes centros urbanos, fazendo entretanto contratos precários para acudir a faltas nas urgências ou situações similares no setor privado. É, em parte, destes profissionais que se alimentam as empresas de trabalho temporário. A situação é insustentável por vários motivos: ganham geralmente mais do que os médicos seniores e do quadro; não integram as equipas médicas hospitalares, para formação, acompanhamento de doentes e investigação de casos clínicos; vêm fortemente limitadas as suas competências profissionais, pois não evoluem na aprendizagem nem no contacto regular com uma casuística mais complexa e desafiante.
Este é também um dos motivos de mal-estar no seio das administrações dos hospitais e entre a classe médica, o que bem se percebe e contamina toda a prestação.
O governo deve rapidamente atuar neste domínio porque mostra impotência. Sempre que abre concursos, há médicos no mercado mas aqueles ficam desertos. Isto vem-se repetindo ano após ano e nada acontece. Na área da medicina geral e familiar é público e notório o prejuízo que isto traz a cerca de um milhão de pessoas sem médico de família.
O governo tem agora uma excelente oportunidade para liderar estes processos de mudança: tem à frente do Ministério da Saúde pessoas competentes e com provas dadas; a opinião pública, os doentes e os profissionais anseiam por medidas e depositam confiança na ação do governo; a oposição é minoritária e revela pouca capacidade de intervenção. De que está à espera?
NOTA: Interrompo aqui a minha participação semanal neste espaço de opinião. Tive o grato prazer de ser lido por muitas pessoas ao longo dos últimos 4 anos, com elogios e críticas severas. É com isso que se constroem espaços de discussão, controvérsias estimulantes e ideias inovadoras. Prometo voltar, sempre que as questões da saúde me mereçam uma muito especial atenção.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.