Com a publicação do programa do governo e do OE para 2022, vieram de novo à liça as questões estratégicas para a saúde dos portugueses. Deixemos de lado as querelas ideológicas entre os defensores do SNS e os que apostam mais no setor privado, pois o modelo está definido: o SNS continuará a ser o modelo dominante e o setor privado subsidiário ou alternativo para alguns segmentos da população.
A procura de cuidados de saúde, à medida que a população envelhece e as ciências médicas evoluem, modificou-se substancialmente, deixando de ser episódica ou acidental, para se tornar crescentemente permanente e crónica. A idade arrasta consigo a fragilidade e a multipatologia e a ciência potencia novas soluções clinicas para a sobrevida com mais qualidade. É com estas tendências que os sistemas de saúde se têm que reorganizar para se manter adaptados às circunstâncias dos doentes e às suas expetativas.
Importa tomar consciência que Portugal é o quarto país da EU com mais idosos face ao todo populacional (22,1%) e que ocupa a terceira posição no índice de envelhecimento (151 idosos com mais de 65 anos, por 100 crianças e jovens até aos 15 anos). É neste contexto demográfico que mais premente se torna revermos a estratégia de resposta aos problemas de saúde.
Neste cenário sobressaem duas orientações estratégicas fundamentais: a continuidade dos cuidados e a sua proximidade face às famílias e aos doentes. Deixemos a primeira para outra oportunidade mas fixemo-nos de momento na questão da proximidade, sublinhando todavia que as duas dimensões estão umbilicalmente relacionadas, potenciando-se mutuamente.
Afirmemos desde já que o nosso SNS não tem na proximidade uma das suas caraterísticas. Desde sempre muito institucionalizado, as suas estruturas e os seus serviços sempre viveram dentro das suas paredes, manifestando uma extrema rigidez em sair dos seus muros e aproximar-se das comunidades. Os centros de saúde e os médicos de família sempre deram consultas quase que em exclusivo nos seus gabinetes, não se notando qualquer evolução com os modelos das USF; os hospitais, por natureza de procura referenciada, não dialogam com os médicos de família e têm na urgência a porta de entrada para grande parte do internamento dos doentes, principalmente nas especialidades médicas. Diga-se que este cenário não é comum no resto da EU, em que o volume de urgências é muito inferior e o internamento hospitalar é, na esmagadora maioria dos casos, programado em articulação entre os médicos de família e os especialistas hospitalares. Mas também a medicina geral e familiar se exerce de forma diferente, com países a atingir quase 50% das consultas realizadas no domicílio dos doentes.
Do mesmo modo, temos os cuidados continuados e paliativos quase sempre prestados em instituições, sendo raras as estruturas públicas organizadas para trabalho domiciliário, sendo este desenvolvido por estruturas privadas sem fins lucrativos inseridas na comunidade.
Focar a atenção do SNS no trabalho na comunidade como ação estratégica bem planeada e articulada, com o compromisso dos diferentes níveis de cuidados, e o inestimável apoio das autarquias e das IPSS e Misericórdias, seria, assim, una iniciativa política do maior alcance, quer para a vida de muitos doentes e famílias, quer para a maior eficiência na utilização dos recursos.
O governo prevê já, neste orçamento, algumas iniciativas que concorrem para esse objetivo, sendo de realçar as seguintes:
- Compromisso dos médicos de família visitarem periodicamente os utentes dos lares, uma medida que há muito deveria ser mandatória, por razões óbvias, e que com a COVID se revelou imprescindível;
- Criação de equipas móveis de medicina geral e familiar para zonas do país de baixa densidade e em que os utentes estão mais longe dos centros de saúde, solução que pressupõe novos recursos e cuja concretização teremos que aguardar;
- Desenvolvimento de mais experiências de hospitalização domiciliária, num processo que vem de trás com o maior sucesso, quer na satisfação que proporciona aos doentes e familiares, quer pelos resultados já obtidos, com recuperações mais rápidas, menos infeções e menos mortalidade, quer ainda pelo aumento da capacidade de resposta do internamento hospitalar para casos mais graves e complexos;
- Aposta em mais áreas de dia para reabilitação e cuidados continuados, evitando sempre que possível afastar o doente do seu meio familiar.
Mas também será justo enaltecer o esforço que muitos hospitais fizeram neste período de pandemia, facultando a muitos doente a entrega domiciliária da sua medicação de continuidade ou acordando com as farmácias de oficina uma recolha mais próxima da medicação. Com estas iniciativas, os doentes crónicos com patologia severa mantiveram o cumprimento da sua medicação no longo período de confinamento, como vários estudos entretanto realizados comprovam.
Esta estratégia de proximidade deve no entanto começar nos cuidados primários, setor que tem tido imensas dificuldades em adaptar-se a estes desafios. Os utentes têm dificuldades em marcar consultas, os telefones disponíveis são poucos e as chamadas pouco atendidas ou não encaminhadas, o contacto com o “seu” médico de família é quase impossível, havendo uma barreira bem visível entre a instituição e os doentes. É claro que há exceções e devem ser enaltecidas. Mas o que importa aqui é criar um padrão regular de comportamento de proximidade por parte dos médicos de família, com disponibilidade de contacto direto durante grande parte do dia, como acontece noutros países europeus. Do mesmo modo, a visita médica domiciliária deverá ser incentivada, inclusivamente com prémios ou remuneração acrescida, porque muitos problemas de saúde se poderão resolver desse modo, como se prova em todos os países em que esse procedimento é norma. Também aqui, a pandemia permitiu impor de forma generalizada a teleconsulta, mesmo que por vezes incorretamente assim classificada. Uma simples chamada telefónica não é uma teleconsulta, mas convém dizer que permite acompanhar a evolução dos doentes, ajustar alguma medicação e dar conforto emocional. Ainda bem que a pandemia promoveu os contactos telefónicos entre utentes e médicos de família, sinal de proximidade que, infelizmente, antes não existia. Esperemos que tenha sido uma prática que veio para ficar.
Por seu lado, os hospitais deveriam ter mais equipas de apoio domiciliário, designadamente em patologias bem tipificadas como a dor crónica, muito comum em doentes oncológicos em fase avançada. Obrigar estes doentes a ir de ambulância à consulta da dor hospitalar é desumano, pois só vai agravar o seu sofrimento e o seu desconforto. Visitei há alguns meses um dos maiores hospitais de Barcelona e contactei justamente uma unidade de dor crónica, que dispunha de uma equipa médica e de enfermagem que trabalhava doze horas por dia em visitação de doentes crónicos acamados nos seus domicílios.
Do mesmo modo, todos nos deveríamos interrogar das razões que obrigam os doentes em situação agravada e muito debilitados a ter que se deslocar em ambulância para as urgências hospitalares, onde esperam horas, às vezes para uma simples observação, alguma terapêutica e regresso a casa, outras vezes para ficarem internados. A fragilidade e o sofrimento destes doentes aconselhariam um procedimento diferente, com uma visitação médica do médico de família, primeiro, sinalização para a equipa hospitalar, se fosse necessário, e do diálogo entre médicos seria definido o encaminhamento a dar ao doente, inclusive o internamento, sendo só em situações críticas para um serviço de urgência. Os internamentos poderiam ser programados e diretos de casa para a cama hospitalar, sem passar pelo serviço de urgência.
Precisamos, assim, de mudar padrões de atuação no SNS e estes novos modelos de governação clínica devem ser rotinados e criadas as condições técnicas para isso, designadamente através do processo clínico único por utente do SNS, previsto também no PRR e no OE.
A proximidade constrói-se mais com alterações funcionais que reorientem a forma de trabalhar dos profissionais do que com medidas administrativas. Aquelas são mais difíceis mas são as necessárias. Alterar a forma sem alterar o conteúdo é apenas uma ilusão.
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