A campanha eleitoral teve nos debates televisivos os momentos mais importantes e mais úteis para o esclarecimento dos cidadãos. O tema da saúde foi frequentemente tratado, por iniciativa dos entrevistadores e dos próprios entrevistados, sendo a discordância de pontos de vista, a principal caraterística quando o debate foi entre esquerda e direita. A esquerda defendendo o SNS e o investimento público em detrimento do setor privado, a direita abrindo a porta ao setor privado, como alternativa às insuficiências do SNS ou até em sua substituição. Dentro desta lógica, António Costa trouxe para o debate com Rui Rio a visão mais atualizada do programa do PSD quanto ao modelo de financiamento, um tema, diga-se, pouco desenvolvido nesta campanha.
Na verdade, não tivemos propostas explícitas e fundamentadas, no sentido de alterar o atual modelo, assente nos impostos gerais e permitindo o acesso tendencialmente gratuito dos cidadãos a cuidados de saúde universais. Mas o programa do PSD, ao colocar a ideia de que ninguém pode deixar de ter acesso aos cuidados de saúde por insuficiência de recursos, admite de facto a possibilidade de que os que têm recursos ditos suficientes possam vir a ter que pagar mais alguma coisa quando se dirigem a serviços públicos, para além dos impostos que já pagam. Isto é, a gratuitidade tendencial para todos no momento da utilização, apenas contrariada pelas taxas moderadoras, passaria a deixar de fora as classes médias e as de altos rendimentos, para as quais seriam criados escalões de comparticipação para consultas, meios complementares, cirurgias, internamentos, hospitais de dia, etc,ou seja, copagamentos. Esta proposta, para além dos problemas constitucionais que envolve e que a tornam de difícil aprovação, não é nova e já esteve desenhada pela direita parlamentar desde os tempos de Cavaco Silva, criando-se, até, em forma de Lei, um seguro alternativo de saúde (o SAS). Este seguro, para famílias de médios e elevados rendimentos, permitiria a saída do SNS para todos os portugueses que quisessem optar pelo setor privado e que, assim, deixariam de ter acesso aos serviços públicos. Em contrapartida, receberiam de volta uma parte dos seus impostos, justamente porque prescindiam do uso de um serviço público. Criaríamos, assim, um sistema de saúde a duas velocidades, uma parte – o SNS – para as classes de rendimentos mais baixos e uma segunda parte – dos seguros de saúde – para as pessoas de rendimento médio e elevado. Deixava de haver o princípio da solidariedade no financiamento da saúde, e rapidamente o SNS seria residual, com poucos recursos e destinado aos mais velhos e mais pobres.
Para este cenário, os seguros de saúde de natureza comercial teriam que evoluir para um novo paradigma: cobrir todos os riscos dos seus segurados e não poder fazer exclusões ou criar impedimentos, pela idade ou condição de saúde. Em Portugal, as companhias de seguros não estavam e não estão em condições de aceitar estes riscos, pelo que o projeto do então PSD caiu, mesmo antes da sua aprovação.
Rui Rio, perante a pequena maldade de Costa, ripostou com desconforto e um sorriso, denotando o embaraço em tentar esclarecer. Mas sempre foi dizendo que havia em Portugal cerca de 4,5 milhões de portugueses com seguros de saúde, pelo que não seria dramático introduzir esta figura, pelo menos complementar, de cobertura do risco de adoecer para as famílias ricas e remediadas.
Convirá, por isso, verificar o peso dos seguros nas despesas de saúde em Portugal. A realidade mostra-nos que os seguros comerciais têm ainda pouca expressão no contexto do sistema de saúde português. Representavam menos de 3% do total das despesas de saúde em 2010 e, apesar do crescimento praticamente constante ao longo destes anos, representavam 4,1% em 2020. Ou seja, se for verdade que perto de 50% da população portuguesa tem um seguro de saúde, fica a ideia que, ou o utilizam muito pouco (será a metade mais saudável e que não tem doenças?) ou os seguros cobrem apenas afeções mais simples e excluem as chamadas doenças catastróficas e as pessoas mais velhas (bem provável) ou estão implicitamente incorporados em cartões de crédito, viagens e outros produtos financeiros, tornando-se “invisíveis” para os seus portadores. O que parece claro é que os seguros de saúde estão longe de poder ser alternativa para os cidadãos, pelo menos como forma de proteção efetiva dos riscos inerentes a uma população muito envelhecida e com forte carga de comorbilidades associadas.
Outra coisa, bem diferente, é quando falamos em subsistemas de saúde, em que sobressai a ADSE (para os funcionários públicos e seus familiares). As suas caraterísticas distinguem-se bem dos seguros comerciais, na medida em que cobrem todos os riscos e os prémios dos beneficiários são baseados nos seus salários e não nos riscos individuais de que são portadores, incorporando, assim, um elemento de solidariedade intragrupal que evita discriminações. Estes subsistemas voluntários têm um peso superior nas despesas de saúde face aos seguros comerciais (5,1% em 2020),sendo a ADSE responsável por cerca de 56% desse valor (2,8% da despesa total em saúde). Mas a tentação de criar uma ADSE para todos os portugueses, não resiste a uma análise profunda do modelo de consumos que lhe está subjacente, sem critérios de adequação, sem métricas de controlo, sem preços ajustados aos resultados e apenas assente em actos clínicos avulso. Em 2019, os custos por beneficiário da ADSE (cerca de 1,2 milhões de pessoas) foram superiores a 465€, cerca de ¼ do valor capitacional gasto, em média, por cada português. São privilégios que só alguns podem ter, mas são uma válvula de escape importante para a falta de resposta, muitas vezes dramática, do SNS.
É verdade que o SNS apenas cobre atualmente perto de 68% das despesas de saúde, contrariando a lógica social europeia, em que, independentemente do modelo de financiamento (por impostos ou por seguros sociais e/ou regulados) os Estados cobrem, com despesa pública, cerca de 80% dos custos. Esta fragilidade da resposta pública, que pressupõe um esforço mais elevado das famílias portuguesas no pagamento dos cuidados, revela que muitos cidadãos, por necessidade ou conforto, recorrem a serviços de saúde privados. Cerca de 40% das despesas das famílias em privado, são em consultas e exames de diagnóstico, 22% em medicamentos e 15% em hospitalização, neste caso com aumentos muito significativos nos últimos anos (taxa de variação nominal superior a 17% só em 2019).
Importa clarificar que estes valores traduzem níveis de consumo muito desiguais entre ricos e pobres, sendo óbvio que são as classes médias e de mais elevados rendimentos que estão por trás destes gastos. São sinais crescentes de desagrado sobre a oferta dos serviços públicos a diferentes níveis: tempos de espera, facilidades de marcação, personalização e conforto. O SNS não pode ser indiferente a esta insatisfação e a esta fuga de utentes para o setor privado (que entretanto se desenvolveu com boa organização, modernização tecnológica e qualidade) e deve promover a reestruturação dos seus serviços, para que a qualidade da resposta seja competitiva e corresponda às expetativas das pessoas.
E isto remete – nos para o segundo tema mais discutido nesta campanha: as listas de espera e a utilização alternativa dos serviços privados e do terceiro setor. Mais à esquerda, BE e PCP pedem mais recursos para o SNS mas esquecem-se, por cegueira ideológica, de resolver o problema premente de milhares de doentes que aguardam há meses ou há anos uma consulta ou uma cirurgia. O PS aceita que este é um problema que deve ter na solução o apoio dos setores privado e social, como se passa já, aliás, com o SIGIC (Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia) que contempla tempos máximos de espera e a atribuição de vales-cirurgia para que os doentes com o seu prazo ultrapassado possam ser intervencionados no setor privado. O PSD propõe o alargamento do SIGIC às consultas externas e a passagem dos cidadãos sem médico de família para “médicos assistentes” a contratar no setor privado, sabe-se lá em que regime e com que perfil de atendimento e de remuneração. Entre o preconceito de considerar o SNS como única resposta, de um lado, e o de querer relegá-lo para o baú da história, passando os cidadãos para o setor privado, por outro lado, há felizmente uma via de sensatez e inteligência que pretende reestruturar o SNS, no respeito pelos valores que representa, pelos serviços inestimáveis que continua a prestar e pelos excelentes resultados de saúde que o país apresenta no concerto das nações. Mas tendo a clarividência de entender o papel cada vez mais relevante do setor privado, como oferta complementar às visíveis ineficiências do Estado.
O próximo governo vai ter que adotar transitoriamente e enquanto não promove a reestruturação dos serviços públicos de saúde (esta é a primeira prioridade e não propriamente injetar mais recursos humanos) soluções internas ou externas para responder aos atrasos que se vão acumulando na resposta aos doentes. Mas deve fazê-lo esgotando primeiro a capacidade disponível no SNS e, depois, definindo claramente as formas de acesso ao setor privado. O que não pode continuar a acontecer é esta situação discriminatória, de acesso fácil e imediato para alguns e enormes dificuldades para os mais desprotegidos. Marcar uma consulta de oftalmologia no privado está hoje ao alcance de um click e a sua realização pode ser no próprio dia ou no dia seguinte. Ter uma consulta de oftalmologia no SNS, passa por uma referenciação do médico de família para um hospital, a posterior marcação e uma espera pela data da realização, tempo, no total, muitas vezes superior a um ano. Estas desigualdades no acesso, no mesmo país, tornam-se insustentáveis.
ÍNDICE SINTÉTICO DE RISCO DA SARS-CoV-2 (99ª semana, 16 a 22 de janeiro/2022)
O número de novos casos não para de aumentar, embora com taxas de crescimento decrescentes (na passada semana cerca de 18%, contra 37% na anterior). O número de óbitos foi o indicador que mais cresceu na passada semana (mais de 50%) numa curva ascendente que fez passar a média diária de 16 mortos há três semanas atrás para 38 na semana passada. O número de doentes em cuidados intensivos foi o indicador com melhor comportamento, mantendo-se praticamente constante (aumento de +0,44%). Não há, como se constata, uma relação direta entre o volume de novos casos e a gravidade dos infetados, pese embora se devesse analisar com mais clareza e transparência o aumento significativo de óbitos registados por COVID (admite-se que muitos destes óbitos ocorrem por outras causas, sendo a COVID apenas um diagnóstico secundário e, por outro lado, importaria ter informação fidedigna sobre os casos vacinados e os não vacinados).
.ÍNDICE: 3,90486 (risco muito elevado)
.TENDÊNCIA: subida
.COR DO SEMÁFORO: vermelha
. DIMENSÃO PIOR: número de novos casos
. DIMENSÃO MELHOR: número de doentes em cuidados intensivos
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