Nas últimas semanas temos assistido, de novo, a recorrentes manifestações de falta de médicos. Os casos de Setúbal e de Leiria foram os mais veementes, mas ainda há pouco assistimos à reabertura da urgência do hospital de Almada, na área da pediatria, encerrada há mais de um ano, sendo, por isso, o problema crónico e generalizado. As associações médicas atribuem-no à falta de iniciativa do ministério da saúde, em criar mais lugares, abrir mais concursos e pagar mais aos médicos. Sim, pagar mais, porque pelos vistos os médicos existem, só que preferem não ir aos concursos e manter-se em trabalho precário mas a ganhar muito mais. As corporações omitem sempre que o governo tem aberto sistematicamente os concursos de ingresso e de acesso, mas que cerca de 40 % das vagas ficam anualmente desertas. A explicação é relativamente simples: os jovens médicos, quando não obtêm lugares que pretendem, designadamente no Porto, Lisboa ou Coimbra, desistem dos concursos e ficam a trabalhar em hospitais perto de casa, ainda que de forma precária, seja com contrato, seja através de empresas de trabalho temporário. Ou seja, o SNS não consegue convencer os médicos mais novos a ingressarem na carreira pública e, depois, acaba por contratá-los por valores bem mais elevados, de modo precário. O mercado de trabalho médico é, assim, de pleno emprego, com baixas hipóteses de contratação para os quadros dos hospitais públicos. Mesmo assim, o SNS aumentou em cerca de 18% o contingente de médicos entre 2015 e 2019, em apenas 4 anos, portanto (Pordata, 2021).
Na maior parte dos casos, aqueles médicos fazem trabalho menos diferenciado nos serviços de urgência, onde a maioria se concentra, observando casos de doença simples e que deveriam ser analisados em cuidados de saúde primários ou até numa simples consulta por vídeo-chamada. Outros, em especialidades muito carenciadas, como é o caso da anestesiologia, preferem correr o país de lés-a-lés, trabalhando 24 horas seguidas em cada local e descansando o dia da viagem. Esforçam-se imenso mas ganham muito mais. Como é fácil imaginar, este tipo de trabalho, sem vínculo e sem sujeição hierárquica, envolve vários riscos para os hospitais e, sobretudo, para os doentes.
Estes médicos não têm a noção do que é trabalhar em equipa, aparecem hoje e vão-se embora amanhã, trabalham, de forma mais ou menos intensa, 24 horas consecutivas e são remunerados à hora, por valores substancialmente superiores aos dos seus pares séniores e que constituem os quadros dos hospitais. Os riscos para os doentes e o mal-estar para os restantes profissionais são evidentes, mas mesmo assim, nem o governo, nem a Assembleia da República (AR), nem a Ordem dos Médicos (OM), nem os sindicatos, apresentam propostas que permitam travar este descalabro. Importa referir, com alguma estupefação, que os médicos dos quadros dos hospitais trabalham também, quase sempre, em regime de 24h consecutivas nas urgências dos respetivos hospitais, o que acarreta um conjunto não negligenciável de problemas: a exaustão provocada por um esforço físico e mental tão prolongado, põe em grave risco a qualidade e a segurança da assistência médica; esgotam em dois dias de trabalho o seu horário semanal (40 horas), já com algumas horas extraordinárias no bolso, o que lhes permite processos de acumulação mais sólidos e com horários adequados à gestão privada; não respondem em permanência aos seus doentes internados, provocando dias de internamento em excesso; concorrem para o alargamento dos horários de urgência interna*, que muitas vezes se iniciam às 15h, nos dias úteis. Mas há mais: os médicos do quadro não podem estabelecer contratos de trabalho paralelos com o próprio hospital em que trabalham, mas podem fazê-lo com o hospital vizinho. Estes processos de acumulação são, em parte anedóticos, por vários motivos: a) o hospital e o médico estão de acordo em contratualizar mais horas de trabalho, para além do horário – base. Contudo, a lei não o permite, exceto em regime de horas extraordinárias; b) todavia, o mesmo médico já pode fazer uma acumulação com outro qualquer hospital público ou privado. c) assiste-se, muitas vezes, a uma troca de posições ao longo da semana, que não garante estabilidade aos médicos e aos hospitais, nem segurança aos doentes. A situação é caricata, mas explica muitas coisas, a saber: os médicos são insuficientes no modelo de contrato atual, mas poderiam ser suficientes com outro modelo, mais flexível e por incentivos; as remunerações auferidas por cada médico nessas circunstâncias são, afinal, muito superiores ao valor-base que a lei define, quer em horas extraordinárias quer em regimes paralelos de acumulação de funções (quase sempre em trabalho de urgência), mesmo dentro do SNS. A eficiência dos serviços clínicos ressente-se com estas práticas, as listas de espera e a falta de camas tornam-se frequentes, as salas de operações ficam vazias da parte da tarde e as urgências acabam por absorver recursos humanos inusitados, criando um ciclo vicioso infernal e um planeamento dos horários de trabalho completamente inadequado e mais dispendioso para o erário público.
O governo não pode continuar insensível a estes graves problemas de funcionamento, não só porque os conhece bem, mas também porque, com essa apatia, contribui para manter uma ideia de falta de meios que parece tudo justificar: doentes em espera evitável, despesas excessivas com empresas de trabalho temporário e horas extraordinárias exorbitantes. Tudo parece resumir-se à admissão de mais profissionais quando o problema tem razões a montante que devem ser previamente explicitadas e resolvidas.
A aparente falta de médicos deveria começar por ser resolvida com uma discussão séria e consequente sobre as carreiras e as remunerações médicas. Enquanto as primeiras forem desvalorizadas e as segundas modestas continuaremos a ver médicos a fugir à integração e a preferirem a atividade “free lancer”. Mas esses modelos terão que privilegiar o mérito dos desempenhos e não as horas de trabalho. Até agora não vemos as corporações médicas muito disponíveis para encarar esta nova realidade, muito agarradas que estão a carreiras baseadas na antiguidade e remunerações baseadas nas horas de trabalho. Não creio que pagar mais por mais horas seja a chave para a resolução dos problemas. O volume de trabalho e, sobretudo, o cumprimento de metas de desempenho, a dedicação aos doentes e a qualidade do serviço, são os desafios que mais contam para a vida de muitos doentes e deveriam ser a base da remuneração médica. Choca-me ver serviços médicos bem preenchidos em que as listas de espera se estendem por anos de espera e em que os profissionais se sentem divorciados dos problemas e das soluções. Não basta reclamar soluções pedindo sempre mais meios. É sempre bom perguntar às corporações o que poderão fazer para ajudar a resolver os problemas. E a OM e os sindicatos parecem estar sempre do lado dos problemas, reivindicam por tudo e por nada, mimetizando-se nos interesses e nos valores que defendem, como se não fossem parte decisiva para as soluções. E estas passam por 4 eixos essenciais: a) revisão das carreiras e aumento das remunerações; b) remunerar pelo mérito, definindo metas que promovam o acesso a cuidados de saúde; c) promover, assim, a dedicação plena dos médicos aos serviços públicos, reduzindo substancialmente a acumulação de funções; d) aumentar a oferta formativa de médicos (como irá já acontecer com a Universidade Católica) para promover a cobertura universal do país.
A OM tem tido, aliás, nesta questão da falta de médicos, uma atitude estranha e contraditória. Ainda recentemente, e a propósito da abertura de mais vagas nas faculdades de medicina, a OM teve a atitude (esperada, diga-se) de alinhar com a visão mais retrógrada e corporativa assumida pelas faculdades: não precisamos de mais médicos, o contingente anual de admissões não deve ser aumentado, os cidadãos estão redondamente enganados porque há médicos suficientes no mercado. Estes argumentos, muito baseados numa informação conveniente, mas pouco credível, da própria OM quanto ao número de médicos em exercício (as instâncias internacionais recomendam um desconto de 30% sobre os números indicados pela Ordem) dão força às teses mais reacionárias que consideram que o acesso à profissão deve ser bem controlado para que a oferta médica seja escassa, o seu valor relativo de mercado sempre elevado e a acumulação de funções uma prática generalizada e “sui generis” no contexto de todas as profissões. Não é esta a visão que se esperaria de uma Ordem profissional, já que a sua missão é prioritariamente defender o interesse público, neste caso pugnando por uma cobertura universal de médicos pelo território nacional.
Mas também não deixa de ser espantoso que, perante a escassez de efetivos nos serviços públicos e o envelhecimento do corpo médico, não se admita a hipótese de alterar as idades-limite para o exercício em serviços de urgência. É bom saber-se que os médicos com mais de 50 anos podem eximir-se ao trabalho de urgência noturno e com mais de 55 anos às urgências noturnas e diurnas. Esta situação perdura há dezenas de anos, como se a idade ativa dos médicos tivesse parado no tempo, nos anos 70 do século passado. Hoje um médico com 55 ou 50 anos está no apogeu das suas capacidades e o seu contributo para a liderança de equipas médicas nas urgências hospitalares seria precioso para a qualidade dos serviços. Tudo isto seria possível negociar com os sindicatos e a Ordem, num processo de alteração substancial das cargas horárias de urgência (escalas de 8 horas, no máximo e, excecionalmente, de 12h). Mas não, as regras são inamovíveis, todos têm medo de levantar o problema, e preferimos fechar urgências ou contratar empresas para prestar serviços ocasionais. Para agravar o problema, a OM estipula ratios excessivos de médicos por especialidade em presença física nas urgências, fazendo chantagem permanente em relação à idoneidade formativa. No caso de Setúbal, exige a presença física de 3 especialistas de ginecologia/obstetrícia na urgência, nas 24 horas do dia, insensível ao facto deste hospital registar uma média diária de 40 urgências e 4 partos por 24 horas (uma média de 1 parto em cada 6 horas), realizados, em 90% dos casos, por enfermeiros. Não há gestão de recursos humanos que resista a este despautério e à ilusão de que a OM é que tem razão e defende o interesse público, quando acirra à instabilidade e pede o irrealizável. Este ambiente tóxico em que vivemos, que nos impede de dar os passos que deveriam ser dados para ajudar a resolver os problemas, e em que a OM tem um papel central, exige uma rutura que um dia, mais tarde ou mais cedo, terá que ser feita.
Até lá viveremos neste ecossistema hipócrita, em que quem manda percebe muito bem o que se passa, mas prefere sempre contornar os problemas sem os resolver, e quem tem responsabilidades éticas e deontológicas articula um processo permanente de reivindicações, muitas vezes de fora para dentro das instituições, com uma postura não assumida contra o interesse público, defendendo apenas os interesses próprios da corporação que representam.
A propósito, o partido que suporta o governo apresentou na passada semana uma proposta de revisão das competências das ordens profissionais, tendo em vista conservar para o Estado competências essenciais de defesa do interesse público. Esperemos que o processo corra bem e chegue a bom porto. Mas temo que as questões nevrálgicas, na área da saúde, sejam secundarizadas e fiquem, mais uma vez, para trás.
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(*) As urgências internas são tempos de trabalho médico de vigilância e manutenção dos doentes internados, realizado fora das rotinas ativas de diagnóstico e terapêutica. Realizam-se para além dos horários normais dos médicos ao longo da semana (em bom rigor entre as 20:00h e as 08:00h do dia seguinte) e aos feriados e fins-se-de-semana.
ÍNDICE SINTÉTICO DE RISCO DA SARS – CoV -2 (semana de 4 a 10 de outubro –previsão realizada a 9 de outubro)
Pela primeira vez, desde o final de agosto deste ano, o Índice sobe, ainda que muito ligeiramente. Para isso contribuiu a subida no número de mortos registada nesta semana (de 5,57 para 6,83, em valor médio diário) e também, ainda que menor, o crescimento no número de infeções (de 595,57 para 616,50, em valor médio diário):
. ÍNDICE SINTÉTICO: 0,336285 (baixo risco)
. TENDÊNCIA: subida
. COR DO SEMÁFORO: verde
. DIMENSÃO PIOR: número de óbitos diários
. DIMENSÃO MELHOR: número de novos casos diários
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