Muito se escreveu e falou já sobre o impacto da Covid no SNS e em particular na atividade dos hospitais. Nos princípios de março e até ao verão de 2020, o tema central era a capacidade de resposta aos doentes Covid, a insuficiência de camas de cuidados intensivos e de ventiladores e a falta de pessoal. Mas depois alguém reparou no desamparo dos doentes não Covid, nas quebras de resposta a doentes crónicos e a novos doentes, nos riscos acrescidos que os doentes normais estariam a correr, de certa forma abandonados à sua sorte e sem respostas apropriadas do SNS. Em qualquer das perspetivas há ainda muito pouco trabalho de análise e as aparentes verdades deverão ser relativizadas:
1 – O Governo tentou atuar, na frente da Covid, com rapidez e determinação, conjuntamente com o empenho das administrações dos hospitais e dos profissionais ao nível operacional: contrataram-se mais profissionais, ajustou-se a estrutura de resposta com novos espaços e mais camas, mormente em cuidados intensivos, e foram adquiridos mais ventiladores. A oferta foi sendo sempre capaz de responder à procura específica de doentes Covid, com algumas pequenas exceções pontuais que foram sendo rapidamente resolvidas. Nos cuidados intensivos trabalhou-se em rede, como sempre, e as insuficiências de uns eram respondidas pela capacidade disponível de outros. As reclamações e as pressões dos interesses corporativos foram criando uma ideia desfocada da realidade, pintando um quadro negro quando as cores eram bem mais suaves e policromáticas. Mas isso centrou a agenda política na resposta hospitalar, quando outras dimensões do problema, como o papel da Saúde Pública ou dos Cuidados Primários, iam ficando em segundo plano. E este foco fez com que os hospitais se preparassem bem e reservassem áreas cada vez mais amplas para a Covid. Com isso deixaram um pouco para trás os outros doentes.
2 – Foi por isso que assistimos a uma redução sensível da atividade hospitalar em todas as principais dimensões da oferta: consultas, urgências, internamentos, cirurgias e transplantes. Foram menos 1,3 milhões de consultas realizadas na rede hospitalar pública (-13% face ao ano anterior), menos cerca de 2 milhões de atendimentos de urgência (-31%), aqui sobretudo pelo receio de contaminação por parte dos utentes, com quebras mais pronunciadas em pediatria e urgência geral, menos 120 mil internamentos (-16%), com efeitos mais significativos nas especialidades cirúrgicas, em que as quedas da atividade foram, na média global do ano, de menos 23%, ou seja, menos cerca de 140 mil cirurgias realizadas. Também na área dos transplantes o número de intervenções baixou em 367 casos (-42%), principalmente no rim e no fígado. É claro que estes resultados globais tiveram a sua maior expressão nos meses de março, abril e maio e, depois, em novembro e dezembro, seguindo as próprias ondas que resultavam da incidência do vírus. Nos outros meses do ano as quebras de atividade foram muito menores, com alguns meses a aproximar-se, mas a nunca conseguir atingir, os níveis do ano anterior. Com isto se quer dizer que não houve capacidade de compensar perdas com recuperações nos meses menos fustigados pela COVID. Não foi, assim, possível inverter a tendência de descida pronunciada da atividade normal dos hospitais e com isso perderam, efetivamente, os doentes.
3 – Paradoxalmente, e apesar da aparente pressão dos doentes Covid nos hospitais, estes tiveram, assim, em 2020, um ano de baixa atividade assistencial, com as suas camas com taxas de ocupação média, em vários meses, na ordem dos 60% (março, abril, maio e dezembro), valores que contrastam com as médias habituais de 80 a 85%. Isto significou custos de estrutura ou fixos, por doente, muito superiores a um ano normal e uma sensível baixa de produtividade dos recursos humanos que se viram, ainda por cima, aumentados e com um crescimento inexplicável de horas extraordinárias. Numa análise comparativa com o ano de 2019, verificamos, em todos os grupos profissionais, aumento de efetivos em todos os meses do ano, entre 3,5 e 6% nos médicos (sem internos ou com internos), entre 5,3 e 9% nos enfermeiros e entre 5,5 e 8,6% nos técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica.
4 – Mas os paradoxos não terminam aqui. A mortalidade registada nos hospitais diminuiu em 37% face ao ano anterior, muito fruto da diminuição de doentes, mas também porque a taxa de mortalidade hospitalar diminuiu ligeiramente. Como o número de óbitos em Portugal subiu cerca de 10,5% em 2020 face ao ano anterior, poderemos, com segurança, concluir que se registaram mais óbitos em casa ou então em entidades de saúde privadas, matéria que deveria merecer um estudo mais aprofundado.
5 – No ano passado registou-se um aumento significativo das taxas de absentismo em todos os grupos profissionais. Isto apesar do esforço brutal que foi pedido aos profissionais dedicados à Covid e, designadamente, nas áreas da medicina interna, das doenças respiratórias, infeciologia, cuidados intensivos e anestesiologia. Foi, assim, um esforço e uma dedicação assimétricos, com um crescimento global de 31% no número de dias de faltas ao serviço, sobretudo por doença, em parte explicáveis pelos efeitos diretos da Cpvid, e o apoio a descendentes sem atividades letivas presenciais.
6 – Mas parece não se confirmar uma das críticas mais comuns que se foram ouvindo: a de que muitos doentes crónicos teriam deixado de ser acompanhados pelos hospitais. De facto, no acesso a fármacos de uso exclusivo hospitalar para doentes ambulatórios (cancro, doenças autoimunes, por ex.) não se confirmam quebras, nem na entrega de medicamentos, nem nos respetivos encargos, que até cresceram em 104 milhões de euros (+11%). Pelo contrário, as farmácias hospitalares pareceram adaptar-se bem às exigências do confinamento, proporcionando aos doentes formas mais amigáveis de entrega de fármacos, quer no domicílio, quer fornecendo receituário para períodos mais longos, quer ainda protocolando com as farmácias comunitárias a entrega de medicamentos numa lógica de maior proximidade.
7 – Uma outra constatação paradoxal prende-se com a evolução das primeiras consultas hospitalares, isto é, consultas para doentes novos ou de primeira vez. E o paradoxo é este: apesar da pronunciada diminuição das primeiras consultas, os tempos de espera melhoraram significativamente. A razão para este fenómeno radica na queda brutal de referenciações por parte dos cuidados primários, provavelmente, como dizem, pelo tempo que tiveram que dedicar ao acompanhamento dos doentes COVID e que os impossibilitou de ver outros doentes. É, no mínimo, insólito, que numa crise de saúde pública como esta, os centros de saúde tenham voltado as costas à comunidade, com razões e consequências longe de estar cabalmente esclarecidas.
As próximas semanas serão cruciais para percebermos se e quando iremos ter uma 4ª vaga. Com o desconfinamento, ainda que mitigado, de meados de março, criaram-se condições para um aumento controlado de novos casos. Esta última semana, e pela primeira vez desde 1 de fevereiro, tivemos um aumento de novos casos, em registo médio diário semanal, na casa dos 18% (previsão de 6ª feira, 2 de abril), mas os internados continuam a baixar e os óbitos também. A partir de hoje e com a abertura de esplanadas, museus e similares, lojas pequenas e, sobretudo, com mais escolas abertas, inicia-se um período crítico. Os resultados já conhecidos em outros países europeus não são muito tranquilizadores. Vamos aguardar, com serenidade e muito bom senso. Entretanto, a vacinação salvífica e em massa tarda a arrancar…