Como arrancar um penso
À medida que o número de casos de infecção por SARS-CoV-2 aumenta e que se discutem novas medidas de confinamento, é importante recordar que não há soluções fáceis nem perfeitas. Não é também demais repetir que a questão não é entre salvar vidas e salvar a economia: enquanto a pandemia estiver descontrolada (e está) a economia irá sofrer cada vez mais. O que temos de decidir é se continuamos esta estratégia, ou não.
Começo por reconhecer que Portugal não estava preparado para uma pandemia, tal como não estava a maioria dos países. Não temos um verdadeiro serviço de informação em saúde pública, os nossos recursos estão ultrapassados, a burocracia seria cómica se não fosse tão triste, não há investimento em sistemas complexos, não existe sequer a compreensão das nossas limitações e do papel que a ciência poderia ter. Porque não existe esta compreensão, os nossos governantes investem pouco em ciência e vêem-se forçados a tomar decisões muito pouco informadas por evidência. Portugal, como muitos países, foi forçado a navegar à vista.
Os nossos governantes investem pouco em ciência e vêem-se forçados a tomar decisões muito pouco informadas por evidência. Portugal, como muitos países, foi forçado a navegar à vista
Surgiram então dois tipos de abordagem. Uma, a que vou chamar a do “penso rápido”, consistiu quer num confinamento muito forte durante um curto período de tempo (Nova Zelândia, Singapura), e/ou em estratégias de testagem e tracing de larga escala (Islândia, Taiwan), reabrindo depois de forma quase total e mantendo um apertado controlo de fronteiras. Nestes países não se tentou achatar a curva, tentou-se esmagá-la por completo: arrancou-se o penso de uma vez e voltaram a uma quase normalidade. Uma segunda abordagem, a que chamarei “pára, arranca”, é a seguida pela maioria dos países europeus onde se tenta conviver com a pandemia de forma dinâmica: abre-se a medo, se correr mal fecha-se mais um bocadinho. A expectativa seria de que a estratégia mista permitisse alguma actividade económica e social, mas a verdade é que a primeira abordagem se revelou melhor, tanto a nível sanitário como económico, e que a segunda se está a transformar numa lenta sangria, de dinheiro, vidas, resiliência. Levanta também a questão de que nível de infectados é que deve ser considerado aceitável e por quanto tempo.
A curto-prazo
Um critério para o “pára” tem sido o do número de camas em cuidados intensivos, estabelecendo-se que não seja ultrapassado. Isto esquece que a maioria das mais de 7500 mortes (quase 400.000 na UE) não aconteceu por falta de cuidados de saúde, mas porque não conseguimos salvar os doentes, com ou sem sistemas em ruptura. Ou seja, quanto mais infectados, mais mortes haverá. De qualquer forma, se este limite de recursos não foi já ultrapassado, sê-lo-á em breve. Em Portugal, estão neste momento mais de 200.000 pessoas em isolamento. Em três dias tivemos 30.000 casos. Mesmo que nenhuma destas pessoas tenha infectado alguém (altamente improvável) e que a taxa de letalidade se mantenha, temos de contar com milhares nos cuidados intensivos e centenas de mortes diárias muito em breve. Os clínicos vão começar a fazer escolhas impossíveis já esta semana.
Confrontados com isto, estamos a discutir o fecho de (que) lojas e ouvi ontem que os “especialistas concordam que as escolas não são responsáveis pela transmissão” o que, infelizmente, não é verdade: não só “os especialistas” não têm como saber quantos dos surtos estão a surgir em escolas (pela simples razão de que há muito que perdemos a capacidade de seguir cadeias de contágio), mas também porque reduzir o movimento (seja de alunos, professores, funcionários ou pais) terá sempre um efeito. Na realidade, e como seria expectável, os fechos das escolas no ano passado levaram a uma redução consistente da taxa de positivos nas faixas etárias mais baixas. A discussão é outra, relacionada com custos-benefícios. E claro que é completamente diferente pensar se devemos fechar as creches ou continuar a forçar aulas e exames presenciais na universidade. Este tipo de pensamento redutor parece também orientar a discussão sobre o fecho das lojas ou da indústria e nem se salva a economia nem a saúde. E é-me completamente incompreensível que estejamos a tratar este aumento de casos como se fosse imprevisível e que continuemos à espera de uma anunciada reunião com especialistas, como se a pandemia ficasse parada até terça, à espera de dados que não vão passar a existir, de análises que não se tornarão visionárias.
A médio-prazo
Então porque é que não tentamos a estratégia do penso rápido? Há alguns argumentos contra, dois dos quais são particularmente fortes: 1) Portugal tem uma situação política e geográfica muito diferente da dos países dados como exemplo em cima: para isto funcionar, a decisão teria de ser apoiada a nível europeu; 2) Uma abordagem a esta escala implica um nível de organização e de coordenação que Portugal (e a UE) não mostrou ter.
É bastante triste aceitar que os países mais ricos e desenvolvidos do mundo, responsáveis pelo desenvolvimento das vacinas e de quase toda a ciência que as tornou realidade, estão condenados a sofrer esta lenta sangria. Mas, na verdade, criar as condições que permitam respostas mais eficientes está exclusivamente nas nossas mãos e, durante os próximos seis meses, particularmente nas mãos do governo português.
Primeiro, esta forte união política pode ser usada para desenhar estratégias conjuntas, como aliás já está a ser feito no caso da distribuição das vacinas. A questão das fronteiras também não é inultrapassável e existem mecanismos de controlo e fecho, se necessário.
Em relação ao segundo ponto, não há dúvida que tem havido uma enorme falta de coordenação, quer a nível interno, quer europeu. Como já tenho dito, nada disto era inevitável se tivesse havido preparação e se se tivesse ouvido a ciência. Mas passados tantos meses, não se entende que continuemos a navegar à vista, sem conhecer taxas de prevalência, sem capacidade de análise das cadeias de transmissão e sem testes de larga escala, sejam de antigénio ou genéticos. A nível nacional é urgente criar um organismo, mesmo que temporário, que tenha legitimidade, autoridade e flexibilidade institucional para coordenar os sistemas de informação em saúde e agregar e analisar os dados gerados, sejam do SNS24 ou dos sistemas de identificação de contactos. Este organismo terá de incluir a melhor investigação que se faz no país e ser a semente para futuros sistemas de informação ao nível dos desafios do século XXI, coordenados internacionalmente.
É como se não quisessemos aceitar que a realidade mudou e achássemos que ignorando a crise ela deixe de existir
A responsabilidade é agora nossa
Estamos numa corrida contra o tempo, mas parece que estamos só a correr atrás do prejuízo. Os próximos meses vão ser críticos para que se consiga manter a distribuição coordenada das vacinas, enquanto se monitoriza o aparecimento de novas variantes. Vai ser preciso amplificar e alterar a rede de testes e testar a eficácia de apenas uma dose da vacina que, a confirmar-se, poderá duplicar rapidamente o número de vacinados. Para além de definir prioridades em termos de idade ou grupos de risco, é preciso que se vacinem comunidades inteiras e recolher informação-chave sobre a duração da imunidade e os níveis de vacinação necessários para se conseguir a tão esperada imunidade de grupo. Será necessário apoiar investigação multidiscplinar que permita responder às crises (económica, social, de saúde mental, de confiança) que enfrentamos. A comunidade científica portuguesa é forte e capaz, não há razão para ficar à espera que outros o façam por nós.
Seria então de esperar que a presidência portuguesa tivesse identificado esta coordenação e investigação de ponta como centrais. No entanto, ler as prioridades nacionais da Presidência Portuguesa da União Europeia, particularmente em relação à Ciência e Investigação, é deprimente. Não só se limita à agenda inconsequente do costume, como há uma chocante ausência de menções à investigação fundamental que nos trouxe até aqui, mas também ao Centro de Prevenção e Controlo de Doenças Europeu. Não existe sequer uma ideia clara de combate concertado à pandemia (mas tem uma secção só dedicada ao espaço, com o actual Ministério para a Ciência, Tecnologia e Ensino Superior a defender que serão satélites a proteger-nos do vírus). É como se não quisessemos aceitar que a realidade mudou e achássemos que ignorando a crise ela deixe de existir. Não podemos permitir que a completa vacuidade da actual política científica nos faça perder a oportunidade de usar a presidência portuguesa da UE2021 para conseguir uma agenda ambiciosa de investigação e mitigação de doenças a nível europeu. Se Portugal não consegue ou não quer reforçar a agenda nacional neste domínio, seguramente não terá isso na agenda europeia. É de uma liderança forte e com visão que precisamos, é nossa a responsabilidade de mostrar que é possível.