José
Gomes, o meu tio Zé, morreu com Covid. Tinha 89 anos e um conjunto
de morbilidades associadas. Alzheimer, diabetes, cancro da próstata.
O vírus entrou e foi fatal.
Aconteceu
tudo muito rápido. Uma queda, a necessária ida ao hospital, o
diagnóstico, o internamento sem visitas e, três dias depois, o
aviso à família. Mulher, três filhas, cinco netos e um bisneto
estão de luto… o luto que lhes é possível.
Sendo
Covid a causa de morte, o seu corpo, nu, foi direto para um saco
branco. Numa etiqueta, o nome José Gomes. À funerária coube a
responsabilidade de ler a etiqueta. Nada de reconhecimento visual.
Apenas o colocar do saco com o corpo dentro do caixão.
Fechada e selada para sempre, a urna não foi aberta à família, e nem as mãos sobre as suas tábuas, como hipótese de simular um último adeus, foi possível. Nada de cerimónia fúnebre.
O único pedido que a família viu anuído foi o desvio do carro funerário já a caminho do crematório. Razão? Uma passagem breve pela casa da filha mais velha, onde estava também a tia Luísa, mulher do tio Zé. Mãe e filha estão infetadas com o vírus, cumprem quarentena e o avistamento do caixão dentro do carro, à janela de casa, foi a única forma de se despedirem do pai e do marido.
Tudo isto foi-me contado ao ouvido, por telefone, entre lágrimas, gelo e dor, sem a possibilidade de um abraço forte a uma família, que, apesar de ter como certa a proximidade do fim, não podia prevê-lo tão repentino e este adeus tão desprovido de sentido e dignidade.
Por esse mundo fora as homenagens aos que partem são comuns. A cantar, a dançar ou a carpir, de preto, de branco ou de vermelho, cada povo celebra os seus mortos à sua maneira, cumprindo os seus últimos desejos, como forma de dar início a um luto que nunca começa antes do último suspiro de vida.
O tio Zé não queria ser cremado, queria ser enterrado, vestido com a farda com que prestou serviço militar ao país e com todas as honras que lhe cabiam por direito próprio. Porque morreu de Covid, a sua vontade não foi cumprida. Porque morreu de Covid os familiares viram-se impedidos de o ver uma última vez, confinados cada um à sua casa, sem o consolo dos afetos entre si, com medo dos contágios. Vivem uma espécie de “roubo de luto”.
Contabilizam-se mais de um milhão de pessoas no mundo que finaram vítimas desta pandemia. As suas famílias passam por uma experiência semelhante. O impacto deste luto roubado por um vírus que os lança num pranto infinito ecoa silenciosamente.
“Diz à tua mãe que eu a amo muito” foram as últimas palavras lúcidas do tio Zé à entrada do hospital, onde sentia que ia morrer. Uma mensagem de amor a fazer-nos lembrar o que realmente importa levar da vida.