Nos últimos 40 anos, a mortalidade infantil desceu de 24,3 óbitos por mil nados-vivos para 3,2, a esperança de vida à nascença subiu de 74,6 para 80,8 anos e as despesas de saúde no PIB passaram de 2,8% para 9,1%. Mas não temos tido as transformações que se impunham em matéria de organização e de financiamento. Precisamos de mais despesa pública e menos despesa dos doentes. Precisamos da prometida integração de cuidados e de serviços de proximidade para os mais idosos e doentes crónicos. Precisamos de mais dinheiro para promover a dedicação plena dos profissionais mais competentes. Precisamos de mais eficiência e menos desperdício.
Os indicadores estatísticos mais relevantes colocam hoje Portugal entre os países do mundo com melhores resultados em saúde, e o SNS foi decisivo para este sucesso. Vejamos as principais razões para estes resultados:
1. Acesso gratuito aos cuidados de saúde
Este desiderato só foi possível com a nacionalização dos principais meios de prestação de cuidados, financiados pelo OE com base nos impostos pagos pelos cidadãos e pelas empresas. Foi assim possível desenvolver, com algum planeamento, uma rede compreensiva de cuidados, da saúde pública, à doença aguda e à reabilitação, incluindo a diversificação e significativo aumento das profissões de saúde. A gratuitidade foi decisiva para promover a equidade no acesso (sem discriminações em razão do poder económico e apenas orientadas pela prioridade clínica) e as taxas moderadoras, entretanto criadas, não parecem ter posto em causa estes princípios;
2. Investimento público
Ao longo destes anos o investimento público em saúde não tem parado de crescer, com a exceção do período recente da intervenção da troika, em que a despesa pública regrediu cerca de mil milhões de euros por ano. Foram construídos novos centros de saúde por todo o país e a rede hospitalar foi significativamente modernizada, de norte a sul, do interior ao litoral, com a construção de cerca de 30 novas unidades. A formação e emprego público de médicos, enfermeiros, farmacêuticos, técnicos de diagnóstico,etc. subiu exponencialmente, graças à intervenção direta do Estado. O acesso aos medicamentos tornou-se generalizado a todos os portugueses, inclusive os de preço mais elevado e inacessíveis à bolsa do cidadão comum. A Medicina portuguesa e a tecnologia ao serviço dos doentes expandiu-se para patamares de qualidade e sofisticação que hoje equiparam o nosso país com os países mais desenvolvidos;
3. Prestação pública de cuidados de saúde
Uma das marcas identitárias do SNS tem sido a prestação pública dos cuidados, assumindo o Estado a gestão e o controlo dos serviços. Tal opção, que marcou o debate da Lei do SNS entre a esquerda e a direita (fazendo com que esta votasse contra o SNS), mostrou-se fulcral para o desenvolvimento harmonioso de um sistema de saúde que se tem revelado equitativo no essencial, evoluído nas competências e nas tecnologias, e sustentável nos custos. Um modelo baseado na livre escolha e numa prestação fornecida por entidades privadas em concorrência, não teria estes resultados: as escolhas favorecem os mais informados e com mais poder de compra, a prestação privada em concorrência promove o consumo supérfluo, cria maiores desigualdades regionais e aumenta incomportavelmente os custos. O SNS seria, assim, insustentável.
Mas o percurso destes 40 anos não tem sido um mar de rosas. Há escolhos que se vêm tornando crónicos e opções estratégicas que tardam a realizar-se. É bom não esquecer que um modelo de saúde, por melhor que seja nos seus fundamentos e valores, deve estar em permanente evolução, adaptando-se, a cada dia, às necessidades e às aspirações das pessoas. O SNS não pode ser encarado como uma “vaca sagrada”, intocável, e que apenas precisa de ser “engordada”.
Temos, desde sempre, um problema de financiamento e os apelos a mais dinheiro na saúde, mais médicos e mais enfermeiros, tem perturbado a estabilidade do sistema.
Pois bem, importa perceber que este tipo de argumentos não tem impedido o SNS de crescer, tratar mais e mais doentes, com novas tecnologias e novos resultados na cura e tratamento de muitos doentes.
A despesa pública tem descido nos últimos anos, principalmente com a presença da troika, que entre 2012 e 2015 a fez baixar de 70 para 66% do total das despesas (entretanto recuperadas para 68% em 2018). Isto foi contrabalançado pela subida expressiva da despesa privada, em consultas, exames e, nos últimos anos, também internamentos hospitalares. Somos, na Europa, um dos países em que os gastos diretos das famílias em cuidados de saúde é mais elevado, o que desencadeia maior iniquidade no acesso, sacrifícios injustos para muitos doentes e gastos supérfluos.
A organização dos serviços necessita de um redesenho estratégico que lhe dê mais consistência, mais músculo e propicie melhores resultados. As carreiras públicas estão anquilosadas em burocracia e valores de estabilidade de emprego que privilegiam a antiguidade. Muitos profissionais de excelência olham para a atividade privada como garante das remunerações que o Estado não lhes consegue pagar, investindo nesse setor grande parte da sua capacidade e da sua energia e deixando para trás o SNS, que bem deles necessita. Os cuidados de saúde primários incluem mais de 30% de inscritos que nunca lá vão e não conseguem ser a porta de entrada no sistema que trave e reduza a forte afluência a serviços de urgência de situações clínicas injustificadas.
Nos hospitais, os serviços programados, de tratamento e investigação diagnóstica, continuam maioritariamente a funcionar de manhã, de 2ª a 6ª feira. Há muito pouca atividade de tarde e muito rara aos sábados. Os horários de trabalho médico vieram dar legitimidade a esta situação, quando, por Lei, o trabalho dedicado à urgência passou a representar 45% do período normal de trabalho semanal, mais as ausências por descanso compensatório.
A integração de cuidados, de que tantos falam, não passa ainda de uma boa ideia e nem a criação, positiva diga-se, das ULS (Unidades Locais de Saúde) correspondeu ainda a qualquer semelhança com aquele conceito. Continuamos sem assistência médica e integrada no domicílio a muitos doentes com total incapacidade de deslocação, obrigando-os a mobilizar transportes para ir fazer um penso ou ter uma consulta da dor.
A abertura de hospitais em modelo PPP, foi um recurso bem sucedido, face à incapacidade de investimento do Estado: os privados construíram e gerem diretamente esses hospitais, ainda que segundo um contrato bem delineado, feito à medida das necessidades da população e rigorosamente avaliado. Os resultados clínicos têm sido bons e os custos mais baixos do que os da gestão direta.
A empresarialização dos hospitais trouxe uma esperança para a eficiência da gestão e para o rigor das contas. Infelizmente, 20 anos depois, a situação não mostra especiais avanços. A fusão de hospitais, que correspondeu a uma miríade de eficiência e de integração de serviços que fez moda, não se tem revelado positiva. Há, nestes processos, muitos hospitais que foram desvalorizados e, com isso, perderam os doentes. A concentração sem modelos de gestão intermédia dá sempre maus resultados. E, no fim, gasta-se mais….
Os tempos de espera para consultas, exames e cirurgias continuam a ser, para algumas especialidades, uma barreira ao acesso para muitos doentes. O SNS definiu, em boa hora, os Tempos Máximos de Resposta Garantidos (TMRG), em 2018 alargados também aos cuidados primários. Mas os serviços, por dificuldades várias, têm revelado, em muitos casos, uma rigidez de resposta que é inaceitável, face às instalações e aos recursos humanos de que dispõem.
Apesar destes espinhos, o SNS criou um consenso nacional de aprovação à sua volta e os portugueses que utilizam os serviços mostram-se maioritariamente satisfeitos. Até os partidos que não votaram a favor da Lei de 1979, aprovam hoje o SNS e serão até dos que mais protestam em sua defesa…