Desde que em julho do ano passado a VISÃO, e não a TVI – nunca é demais recordá-lo aos menos atentos -, denunciou que a gigantesca onda de solidariedade dos portugueses com as vítimas de Pedrógão Grande estava a ser malbaratada ao sabor de conveniências pessoais e de arranjos político-partidários locais que se revelou serôdio e inútil o papel do Governo (e das entidades que tutela) na recuperação daquela tragédia.
Primeiro, foi a pressão nacional para que tudo fosse feito para ontem e o afastamento do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) da missão de recuperação imobiliária. Não quero sequer supor que a ação do Governo tenha sido determinada pela vontade de que as restantes entidades ficassem de mãos livres para fazerem o que bem entendessem, naquilo que seria um cocktail explosivo de negligência, irresponsabilidade e incompetência.
Depois, veio a ardilosa revisão do regulamento do Revita – o fundo gerido pelo Estado que tratou de vários milhões de euros que todos nós, vá-se lá saber porquê, não quisemos confiar aos poderes públicos -, que permitiu que habitações não permanentes, barracões e casas que nem terão ardido entrassem na lista das reconstruções prioritárias.
Numa terceira fase, já com o escândalo noticiado, veio a guerra dos números. Se já era arriscado fazer fé nas declarações dos vários ministros que, em part-time, iam pegando num dossiê com potencial para ser politicamente danoso, os relatórios oficiais teimavam em não coincidir. Consultem os inventários e cruzem os dados da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC) com os do Revita e com os das demais instituições que andaram no terreno e constatarão o óbvio. Ainda hoje, a contabilidade criativa será, porventura, a mais fiável.
O quarto ato da tragicomédia foi a desvalorização do sucedido. Valdemar Alves, continuarão a defender alguns, até será um cavalheiro recomendável e a presidente da CCDRC, Ana Abrunhosa, terá pautado a sua atuação desde 17 de junho de 2017 pela mais inquestionável lisura. Que o digam os jornalistas, entre os quais me incluo, que pediram para aceder a mais casos de ruínas que viraram moradias e que obtiveram a resposta clássica de quem está desconfortável com a sua performance: por estar em curso uma investigação do Ministério Público, o segredo de justiça teria de prevalecer. Pormenor: cerca de uma centena de processos não estaria nessas circunstâncias…
Entretanto, num quinto momento, o PS nacional (através do silêncio) e o PS local (por via da palavra) caucionavam o padrão ético do homem que, no meio disto tudo, sempre soube de menos. Recordo-me bem de o deputado António Sales, presidente da Federação Distrital de Leiria, ter afirmado, sem gargalhar, que até esgotar-se a presunção de inocência o partido estaria ao lado do antigo inspetor da PJ. O mantra de que à política o que é da política e à justiça o que é da justiça continuava, pois, a ser um belo pretexto para o esvaziamento axiológico na gestão da res publica. Um módico de respeito pelas vítimas exigiria um bocadinho mais.
Mesmo quando desafiado pela oposição – que se resumiu ao CDS e à social-democrata Teresa Morais – a solicitar uma fiscalização ao Revita conduzida pela Inspeção-Geral de Finanças, o Executivo de António Costa encolheu os ombros e poupou-nos a maçada de confirmarmos o receio de que os benfeitores estiveram um ano a desempenhar o papel de idiotas úteis.
De lá para cá, perante o chorrilho de reportagens mais ou menos sinistras da TVI, a mesma incontrolável fúria para que tudo fique na mesma. Importa mais descredibilizar o picante jornalístico que pareça “fake” do que tirar conclusões das peças que nos trazem “news“. Especialmente das incómodas. É o novo normal, bem sei.
Pelo caminho, não interessa que haja toneladas de bens doados a cheirar a mofo ou à mercê de meliantes. As paredes do Largo do Rato não aquecem nem arrefecem face à presumível inimputabilidade de Valdemar Alves, de Margarida Guedes e das respetivas famílias que capturaram Pedrógão Grande.
Pelo caminho, parece secundário que António Tomás Correia, presidente da Assembleia Municipal, tenha patrocinado pactos de não-agressão entre alguns deputados locais do PS e do PSD para expurgar das reuniões públicas qualquer possibilidade de esclarecimento.
Pelo caminho, torna-se uma questão de somenos que Ana Abrunhosa, promovida no último ano a escudo humano de Pedro Marques, apareça, leve e sorridente, nas filas da frente da convenção que confirmou o ex-ministro do Planeamento como cabeça-de-lista do PS às europeias.
Pelo caminho, quase todos nos demitimos de questionar o que cada um destes responsáveis públicos sabe sobre o maior ataque de que há memória à generosidade nacional. Ou, sequer, sobre o que cada um deveria fazer para não condenar ao descrédito qualquer campanha solidária futura.
Recuso exercícios do tipo “eu sei que tu sabes que ele sabe que nós sabemos que vós sabeis que eles sabem”, mas só apetece perguntar o que sabe Valdemar Alves e quem, das chefias intermédias da Administração Pública aos mais altos cargos da nação, pode sair beliscado por aquilo que ele saberá. Afinal, quem tem medo de Valdemar Alves?