O vento corta a pele como uma navalha afiada. Deixa marcas nas mãos e nos rostos magros de quem sabe mais vezes o que é a fome do que outra coisa. Queima a pele, escurece-a na mistura de pó da terra e do sol. Manuel da Fonseca escreveu sobre mulheres e homens assim, cortados pelo vento e pela fome, e, como só ele, de uma forma crua e inteira descreveu estas gentes que sobreviviam nos campos do Sul. Num posfácio datado de 1984, de uma reedição da Seara de Vento, explicou que escrevia assim porque assistiu “às consequências do levantamento de novembro de 1918, acontecido ao mesmo tempo em Vale de Santiago e Odemira, dos rurais de Santiago do Cacém. A razão desse levantamento, que o governo sidonista, tal como outros governos, não consentiu ouvir e fingiu desconhecer, era evidente e antiquíssima: a fome”. E confessa que, da repressão selvagem desses longos meses, houve um momento que guardou para sempre, “guardas a cavalo envolvem, ao meio do largo, um trabalhador rural. Abatem-no à espadeirada. Continuam a golpeá-lo, a pisá- -lo com as patas dos cavalos”. Esse romance foi proibido pelo fascismo, interdita a sua venda de 1958 até 1974.
Agora, quase 60 anos depois da primeira edição, Sérgio Tréfaut cinematografou o Palma, a Júlia, o Bento, a Mariana, a Amanda Carrusca, o Elias Sobral em Raiva, que se antestreou na edição deste ano do Indie Lisboa. Imperdível. Numa das cenas, o protagonista é alertado: “Tu falas demais, Palma. A única coisa que tens a fazer é engolir e calar.” Não calou o Palma, não calou a sua filha, não calaram tantos outros, porque há mulheres e homens que se erguem do chão e resistem.
No nosso país, os últimos a conquistar as oito horas de trabalho foram os operários agrícolas, e neste ano assinalam-se 56 anos dessa vitória nos campos do Sul que pôs fim à jornada de trabalho de sol a sol. Diziam que tinham deixado de ser “bichos da noite”, porque era a primeira vez que saíam de casa com sol e regressavam com sol.
Passados 132 anos do primeiro 1º de Maio, é imensamente atual a luta pela redução do horário de trabalho. Neste tempo em que vivemos de desenvolvimento científico e tecnológico, estes avanços devem servir a redução do horário, da precariedade e da penosidade do trabalho. À nossa frente temos a decisão de colocar as potencialidades da ciência e da tecnologia ao serviço do progresso e da justiça social ou ao serviço apenas da acumulação do lucro de uma minoria. Direitos e avanços científicos são aliados, não inimigos; para tal basta colocar os segundos ao serviço dos primeiros. É por isso que no próximo dia 18, por proposta e iniciativa do PCP, discutiremos a redução do horário de trabalho de 35 horas para todos, enquanto medida de valorização do trabalho, mas também enquanto instrumento de dinamização económica, pois permitiria criar mais 440 mil empregos e reduzir 240 horas de trabalho/ano a cada trabalhador.
Está nas nossas mãos ceifar as searas de vento do século XXI, é uma exigência da democracia e uma homenagem a todas as mulheres e homens que se ergueram do chão.
(Artigo publicado na VISÃO 1314, de 10 de maio de 2018)