Pagou a renda de casa, pagou a água e o gás. Não chegou para pagar a luz. Pagou os almoços da escola e o futebol dos miúdos. Pagou o que devia à vizinha… enfim, parte do que devia e paga o resto no mês que vem. Pagou o passe e carregou os telemóveis. Vai esticar ao máximo no supermercado e concentrar-se no indispensável. E vai rezar a todos os santinhos para que, este mês, o miúdo não precise de roupa, de consultas no dentista ou oftalmologista, ou de dinheiro para outras despesas na escola. “Todo o dia ela faz tudo sempre igual” e num exercício hercúleo divide o que sobra pelos dias do mês, mas rapidamente conclui que precisava que o “Dia de São Receber” fosse já amanhã.
Em Portugal, (sobre)viver com o salário mínimo nacional (SMN) é um teste permanente à dignidade e não é novidade para ninguém que os baixos salários, e em particular o valor do salário mínimo nacional, não vence a causa estrutural de pobreza entre quem trabalha. Quase um terço das pessoas em situação de pobreza são trabalhadores, que todos os dias se levantam para ir trabalhar, mas aquilo que levam para casa ao fim do mês não chega para as despesas básicas.
Em março de 2017, eram cerca de 730 mil os trabalhadores que recebiam o SMN, e – surpreendendo apenas os mais distraídos – a percentagem de mulheres com SMN é muito superior à dos homens: 28,9% contra 18,5%.
O salário mínimo nacional é uma conquista da Revolução de Abril, representou à data uma melhoria muito expressiva nas condições de vida, mas ao longo de décadas tem sido profundamente desvalorizado, com atualizações abaixo do aumento dos rendimentos médios e do índice de preços ao consumidor. Entre 2011 e 2014, esteve congelado e o seu aumento em 2017, para 557 euros, apesar de importante foi claramente insuficiente, não permitindo a recuperação do poder de compra e o combate efetivo à pobreza. Aliás, se ao longo dos anos tivesse sido atualizado, considerando a inflação e o aumento da produtividade, o valor do salário mínimo seria muito superior a 600 euros.
Dito isto, não será por ironia do destino, mas antes por causa de opções políticas, que Portugal mantém um dos mais baixos salários mínimos da Europa, mesmo tendo em conta o facto de a retribuição salarial ser de 14 meses num ano. A evolução da distribuição da riqueza no nosso país traduz uma escandalosa concentração da riqueza, onde 1% da população detém 25% da riqueza e 5% da população acumula cerca de 50% da riqueza nacional.
E antecipando já o estafado argumento da necessidade de redução dos custos para as empresas e das respetivas contrapartidas para o patronato, retenha-se o seguinte dado: as remunerações salariais representam apenas 18% na estrutura de custos das empresas, muito inferior a outros custos com energia, combustíveis, telecomunicações, crédito ou seguros. Mesmo com um possível – mas discutível – arrastamento para os outros salários fruto do aumento mais efetivo do SMN, o seu peso no preço final das mercadorias seria diminuto, como se retira do relatório oficial de maio de 2017.
Ora, o aumento do salário mínimo nacional é uma exigência por razões de justiça social, de dignidade, de uma sociedade que não precisa de fazer emigrar os seus filhos para sobreviver. Mas é-o também por razões económicas, pelo aumento do poder de compra, dinamização da economia e do mercado interno, pelo reforço do financiamento da segurança social.
A realidade desmontou discursos proféticos sobre os impactos catastróficos decorrentes do aumento do SMN, que anunciavam eventuais encerramentos de centenas de empresas e milhares de despedimentos. Independentemente de acordos sobre aumentos faseados até 2019, não há uma razão que justifique a manutenção do SMN abaixo dos 600 euros já em janeiro de 2018. Não vale a pena invocar acordos na concertação social com o propósito de dar às confederações patronais a possibilidade de veto sobre as medidas de combate à pobreza e de melhoria das condições de vida e de trabalho, como é o aumento do salário mínimo nacional.
O Governo deve assumir as suas competências constitucionais e fixar para janeiro de 2018 o valor de €600 para o SMN. Amanhã por proposta do PCP, na Assembleia da República, é isto que será discutido. Por opção e compromisso, não por ironia.
(Artigo publicado na VISÃO 1284, de 1 de outubro de 2017)