A revolução que está a começar na indústria automóvel, com a eletrificação dos veículos, tem deixado muita gente, incluindo responsáveis máximos das marcas, desorientada. O que é natural porque o que está em jogo é muito mais do que substituir motores de combustão por motores elétricos e tanques de combustível por baterias. Todo o modelo de negócio é afetado. Basta considerar que uma parte importante das receitas das marcas advém do pós-venda e os veículos elétricos têm muito menos necessidades de manutenção. Mas há mais. Como sempre, as dirupções tecnológicas põem em risco investimentos de médio e longo prazo. Não é fácil gerir qual o momento certo para desinvestir no “antigo” e apostar no “novo”. Por exemplo, o desenvolvimento de um novo motor de combustão pode demorar alguns anos e custar dezenas ou centenas de milhões de euros (entre desenvolvimento do motor propriamente dito e da respetiva capacidade de produção). A história industrial está cheia de momentos em que marcas quase desapareceram, ou desapareceram mesmo, por terem calculado mal o momento certo para investir numa nova tecnologia. Não é, portanto, fácil estar no lugar dos CEOs neste momento.
Temos ouvido discursos aparentemente antagónicos de alguns responsáveis das marcas automóveis que, por um lado, estão de acordo que os elétricos são o futuro mas, por outro, defendem a continuação do desenvolvimento dos motores de combustão. Aparentemente porque, de facto, não é possível fazer a transformação em meia dúzia de anos, por muitas e diferentes razões, sobretudo as que estão relacionadas com a infraestrutura de carregamento. O que significa que é bom que se continuem a desenvolver motores de combustão mais eficientes, com menores emissões de gases poluentes. A proibição quase imediata de fabrico veículos de combustão, que é defendida até por alguns políticos, pode criar um problema maior que o que resolve, como o prolongamento da vida de carros mais antigos e mais poluentes. Seria provável que se assistisse a fenómenos semelhantes ao que se passa com o parque automóvel da ilha de Cuba, em consequência do embargo comercial dos Estados Unidos, em vários outros pontos do globo.
Mas isto não significa que se deva desacelerar a eletrificação dos automóveis. Na verdade, parece-me que os anúncios que têm sido feitos pelos políticos europeus até vão acabar por ser favoráveis à indústria automóvel que os tem criticado. Isto porque obriga os “nossos” fabricantes a desenvolver mais rapidamente a nova geração de automóveis, tornando-os mais competitivos a nível mundial. Não nos podemos esquecer do que se passa nos Estados Unidos, com a Tesla, mas também com outras startups, e, sobretudo, na China. Se as marcas europeias não acelerarem o passo correm o risco de perderem a liderança que demoraram décadas a conquistar. O que teria consequências desastrosas sobre a economia europeia.
Toda esta contextualização para chegar ao ponto que quero abordar neste texto: os verdadeiros efeitos da poluição dos veículos elétricos versus os veículos com motor de combustão interna. Na tentativa de defender os carros a gasolina e gasóleo, alguns responsáveis de marcas têm optado pela sempre condenável técnica de “atirar areia para os olhos”. Relembrar alguns factos reais para criar uma ideia errada na opinião pública. Uma das frases mais comuns é “os elétricos só são tão ecológicos quanto a fonte de energia que os alimenta”. Corretíssimo. E também é verdade o que normalmente vem depois daquele tipo de frase: boa parte da produção de energia elétrica é baseada em fontes não renováveis. Felizmente, Portugal até tem evoluído positivamente neste campo, mas há muitas zonas do globo onde a energia elétrica tem uma origem “suja”. Outra análise comum é o impacto ambiental total da vida de um veículo elétrico, incluindo aspetos como a produção/eliminação das baterias. E sim, é verdade que estes componentes estão associados a alguns problemas ambientais e sociais relacionados com a mineração e reciclagem.
O que é convenientemente esquecido é o outro lado da moeda. O impacto ambiental de um veículo com motor tradicional a gasolina ou gasóleo está longe de acabar nas emissões resultantes da combustão no motor. Há um pesadíssimo impacto negativo nos processos de produção e distribuição: os camiões cisterna que transportam o combustível para as bombas; a destilação nas refinarias, que consome muita energia; os petroleiros que atravessam os oceanos (cada navio destes tem emissões equivalentes a milhares de carros); as cada vez mais complexas operações de obtenção do petróleo, incluindo a o devastador método de fracturação hidráulica (fracking). Quantos aos efeitos sociais, basta recordar o que se passa no Médio Oriente e como o petróleo está muitas vezes associado a conflitos militares de larga escala.
Os estudos minimamente sérios são claríssimos. Se considerarmos realmente tudo, o impacto ambiental dos veículos elétricos é muito menor que o dos seus congéneres de combustão interna. Mesmo quando – e este cada vez menos é o caso – a maioria da energia elétrica é de fontes não renováveis (consequência do efeito dos rendimentos dos motores e da produção). Depois, devemos considerar as implicações económicas e sociais da menor dependência de importação de petróleo que é possibilitada pelos veículos elétricos. No limite, se quisermos, podemos ser totalmente independentes do petróleo. Pode não ser uma opção economicamente viável, pelo menos para já, mas é uma opção. Há ainda outras vantagens ambientais dos veículos elétricos que são muitas vezes esquecidas: a poluição sonora e a deslocalização da poluição (milhares de carros a emitirem gases numa cidade não tem o mesmo impacto para os humanos que uma central elétrica de fonte não renovável a emitir gases numa zona rural).
Em suma: os veículos elétricos são 100% “verdes”? Não, não são. Mas são bem melhores que os veículos com motor de combustão? Sim, sem dúvida. O vídeo apresentado em baixo, desenvolvido por um grupo de cientistas, demonstra de um modo gráfico e fácil de perceber esta realidade.
(Artigo originalmente publicado na Exame Informática Semanal n.º33, de 23 de setembro de 2017)