Fora Temer!”. Estava escrito num lençol pendurado numa janela no centro de São Paulo. Na berma da estrada, tendas de sem-abrigo, expulsos da cracolândia e entregues a um saco de plástico sobre a cabeça em dia de chuva. João Sensação, porém, conduzia a van com um sorriso franco e uma gargalhada fácil. Trabalha desde os doze. Começou como “moço de recados”, por uns trocados, mas como era “cheirosinho e simpático” foi ficando na empresa, até chegar a idade de tirar a carta de condução e, aí sim, começar a transportar músicos. É o que faz há mais de vinte anos. Pela sua carrinha já passaram Madonna, Beyoncé, Bono Vox e tudo o que é astro da música brasileira. Diz que no geral o povo é simpático, mas há sempre alguns “metidos” que não são “gente como a gente”. Por isso é que gosta tanto dos rappers e dos funkeiros. São da “quebrada”. Gente que não tem “frescura” e que não faz distinção. (Distinção é mesmo termo certo, pensei eu com os botões de Pierre Bordieu, imaginando-o ali connosco, sentado naquela van de vidros fumados a caminho do aeroporto de Guarulhos).
O para-arranca continua e a conversa também. “E Portugal?”. João Sensação acha graça quando eu falo. Diz que pareço o seu avô angolano, que Deus o tenha, chegado ao Brasil faz muito tempo, com um filho ainda pequeno, que entretanto, além de brasileiríssimo, se tornou militar de carreira e pai de João Sensação. “Meu pai é preto-azul, minha mãe é branquela que nem você. Dos oito filho, metade saiu negão que nem eu e os outro clarinho. Foi conta certa!”. Sorri de novo e eu também.
As avenidas de São Paulo passam pelo para-brisas como num ecrã de cinema. O primeiro impacto com aquela cidade desmesurada é sempre duro, mas à medida que vamos percebendo que é possível haver vida humana nas suas entranhas e redimensionando a nossa noção de domesticidade, a primeira impressão vai suavizando.
Há que ultrapassar a claustrofobia e esquecer que somos um ponto minúsculo, numa quadrícula apertada, de uma malha de betão que se estende por léguas e léguas de terra, com mais de vinte milhões de pessoas, dentro de uma cápsula de smog. Não pensar na preocupante falta de água e esquecer que os únicos rios que correm por ali estão canalizados e misturados com esgotos. Que todos os cabos elétricos e de telecomunicações estão atados em monelhos e pendurados sobre as nossas cabeças. Já para não falar do trânsito infernal e das marcas da insegurança, nos hábitos e na arquitetura.
Conseguindo ultrapassar a opressiva condição de pontinho invisível no google map de São Paulo, começamos a reparar nas árvores exóticas que sombreiam as ruas e nas orquídeas que crescem nos seus troncos, na simpatia dos paulistas e na sua eficiência, na boa comida e nos barezinhos castiços, na infinita oferta cultural, na incansável atividade noturna e no “borogodó” que faz desta cidade uma espécie de Nova Iorque tropical, onde há muito de tudo e, sobretudo, de exagerado.
“Já estamos perto!” diz Sensação, enquanto os meninos do semáforo nos querem vender biscoitos Globo, cheios de pressa e arrastando o chinelo. O rádio toca um êxito de música sertaneja e já se percebe que estamos nas imediações do aeroporto. Finalmente, ganho coragem para perguntar “Mas afinal, Sensação é alcunha ou é o seu nome mesmo?”.
“É meu nome!”, responde. “É que quando eu nasci, tinha seis quilos e cem, nasci de parto normal e até desloquei a bacia da minha mãe. Aí, todo o mundo do hospital queria ver o menino que tinha nascido já criado, com seis quilos e cem. Causei a maior sensação no hospital.
Foi por isso que minha mãe decidiu pôr esse nome: João Sensação!” Mais uma gargalhada sonora, de olhos vivos, dentes brancos e bochechas brilhantes, e João Sensação dos seis quilos e cem, puxa o travão de mão à porta do terminal 3 do aeroporto de Guarulhos. “Chegámos”.
Demos um abraço brasileiro e até breve! “Obrigada pela carona João!”.
(Crónica publicada na VISÃO 1266, de 8 de junho de 2017)