Gosto muito dos meus irmãos, acho que tive imensa sorte com eles e acho que são todos, ao mesmo tempo, tão diferentes e tão parecidos. Nunca andámos à pancada uns com os outros, em miúdos, nunca nos zangámos, nunca discutimos, sempre respeitámos o espaço privado de cada um, sempre estivemos juntos nos momentos difíceis, sem pieguices e a maior parte das vezes sem palavras. Para quê? Como o João repetia
– As coisas verdadeiramente importantes dizem-se com o silêncio
e portanto não precisávamos de conversas íntimas: havia muito pudor entre nós. Com o João, por exemplo, partilhámos o mesmo quarto até sairmos de casa, já homens, e acho que a separação nos custou a ambos. Uma noite, muitos anos depois, dormimos, na Praia das Maçãs, nas camas da nossa infância, no quarto onde eu escrevia o dia todo. Foi tão bom estarmos juntos de novo e pareceu-nos que nada tinha mudado. Quer dizer não nos pareceu: nada tinha mudado. Levantei-me primeiro e para chegar à porta tive que passar pela cama onde ele dormia. Ou melhor: eu sabia que ele já acordara e ele sabia que eu sabia que ele já acordara. Então, pela primeira e última vez, fiz-lhe uma festa na cabeça ao sair. Foi um momento tão intenso de amor: vi-lhe as pálpebras tremerem e foi tudo. Foi tanto. O João falou-me nisso, que tempos depois, uma só ocasião. Nunca nos criticámos também. O máximo que podia sair-nos da boca
– Fizeste uma coisa desnecessária
eu que acumulei tanta coisa desnecessária ao longo dos anos de que peço desculpa. Por exemplo em 2007 arranjei um cancro desnecessário.
Estava muito doente, internado no hospital onde o João trabalhava e ele todas as manhãs vinha ao meu quarto, dava uma volta rápida por ali, informava
– Passei aqui por acaso
e ia-se embora sem nos tocarmos. Podem achar esquisito mas foram as visitas mais compridas e ternas que recebi. Todavia o João ainda é uma ferida muito grande em mim e tenho dificuldade em falar de nós. Meu irmão.
O Pedro é outra ferida que embora mais antiga também não sara. Adorávamo-nos, adoramo-nos. Eu não sabia se ia viver se ia morrer e ele a sacudir-me os ombros, com os olhos cheios de lágrimas
– Não me morras, não me morras.
Pouco antes do fim, nem me recordo porquê, desatou a gritar-me, à mesa, em casa dos nossos pais. Palavra de honra que não me recordo porquê. Recordo-me que respondi
– Podes gritar o que quiseres que eu não me zango contigo
e ele calou-se logo. Passada uma hora, ao sairmos pela porta do jardim fomos ambos, como sempre, fazer chichi juntos, no escuro, contra a cascata que era a nossa forma encapotada de estarmos a marmelar um com o outro. Meu mano.
Com o Miguel era diferente, porque a sua sensibilidade à flor da pele me preocupava e sentia-o, volta não volta, sofrer tanto. A única vez que pedi a alguém qualquer coisa foi quando falei com o Ernesto Melo Antunes para arranjar um emprego para o Miguel, que sofreu com a Pide, que acabara Direito, que antes tinha sido expulso quando era presidente da Associação de Estudantes e teve de terminar o curso em Coimbra. A única vez que pedi fosse o que fosse a alguém. Meu maninho.
O Nuno era especial para mim. Sempre o achei o meu menino.
Gostava de muitas coisas nesse rapaz, a começar pela coragem. O Nuno contou à Tereza Coelho
(está na fotobiografia)
que uma tarde entrou na sala onde estávamos com os nossos pais, perguntou
– Há alguém que me pegue ao colo?
e eu fui a única pessoa, numa família onde não se mostravam emoções, que lhe disse
– Eu pego
e sinto que ainda o tenho aqui. Há dias telefonei-lhe só para dizer
– Apeteceu-me dar-te um beijo
um beijo ao homem que ele é agora e ao menino que ainda está lá dentro. O menino de quem fui menino depois de uma missa na Estrela, e ele, que sofria, pegou em mim e levou-me da igreja. Foi tão bom ser o mais pequeno, Nuno.
O Manel, por fim. Não o conheço bem, não o conheço quase. Uma noite perguntei ao Pedro
– Como é que ele é?
e o Pedro, que quase nunca falava, respondeu apenas
– Como nós
e foi tudo. Escrevi-lhe da guerra, era ele miúdo. Somos os dois extremos da latinidade, como dizem os romenos acerca da relação entre a Roménia e Portugal. Devemos ser parecidos, não sei. Alguma coisa há-de haver, desconheço qual. Seja como for é o post scriptum e portanto faz parte da carta. O João, padrinho dele, garantia-me que o garoto ficava bem no retrato. E o João costumava acertar e nunca o vi mentir. Portanto, senhora leitora, senhor leitor, digam lá se eu não tive uma sorte do caraças? Também em alguma coisa tinha que a ter
(Crónica publicada na VISÃO 1264, de 25 de maio de 2017)