A internet é como o trânsito: pessoas habitualmente pacíficas ficam facilmente eriçadas pela ira ao “volante” de um computador, vociferando em caps lock contra todos os imbecis que os rodeiam. Como agravante, na internet podemos escolher quem queremos excluir ou bloquear, na construção de uma espécie de condomínio fechado, onde só quem não nos incomoda está autorizado a existir. Quem discorda ou difere é inimigo ou “desamigado”, alvo de insulto, castigado por qualquer deslize, nesta senda de salubrizar o mundo de qualquer contraditório. Há várias linhas que traçam a geografia do ódio na internet…
Os linchamentos coletivos, por exemplo, são uma espécie de tempestade de destruição moral, no copo de água da atualidade das redes sociais. A cada semana há um cristo que é castigado na via-sacra virtual, com mais ou menos imbecilidade ou culpa no cartório, mas sempre de forma implacável.
Na semana passada foi José Cid, pela repescagem de uma entrevista com 6 anos, em que fazia comentários desagradáveis sobre os transmontanos. Esta semana é a cartomante da SIC, por aconselhar (de forma completamente irresponsável) uma vítima de violência doméstica a responder com mimo ao seu agressor.
E se algumas vezes a revolta coletiva tem raiz num comportamento realmente inaceitável (como é o caso da taróloga), outras vezes é completamente injustificado, como foi aquando da inofensiva piada de Marisa Matias sobre o Sporting, durante a campanha para as presidenciais. Claro que, em nenhum dos casos, mesmo nos mais reprováveis, se justificam as ameaças de morte, os insultos aos próprios e às famílias, ou o nível de violência moral a que assistimos todos os dias nas redes.
Muito menos a divulgação de moradas, na expectativa de que o castigo saia da internet para a “vida real”, como aconteceu no caso do adolescente que postou um vídeo a maltratar o seu cachorro de “estimação”, ou no caso da veterinária que fez a destartarização à cadela de Maria João Bastos. É que após um post emocional da atriz, em que lamentava a morte da sua cadela, associando-a à eventual negligência da veterinária, criou-se uma onda de indignação, com mais de 15 mil partilhas, e muitos foram os que divulgaram os dados pessoais da médica, sem qualquer contemplação e sem estar sequer provada a sua culpa.
Ora se estes “apedrejamentos” já têm graves consequências pessoais e, muitas vezes, até laborais, passar das teclas aos atos seria concretizar o regresso a um hooliganismo primitivo, que as massas tendem a alimentar, mas que o Estado de Direito tem conseguido conter. Voltamos à cena bíblica e não faltará quem atire as pedras.
Passando do coletivo para o individual, não podemos deixar de mencionar os haters personalizados. São aqueles seres nefastos que insultam, achincalham e perseguem de forma muitas vezes obsessiva, pessoas anónimas ou figuras públicas na internet. Entre mensagens de ódio, escárnio ou ameaças, praticam cyberbullyng direcionado, em comentários e mensagens privadas, ou mesmo abrindo páginas públicas só para vilipendiar o objeto da sua abominação.
É quase um culto, pela militância que é devotada, numa espécie de adoração invertida (provavelmente por carência, ou por inveja transformada em desdém e implicância). Nesta vilania, parecem não ter consciência de que está uma pessoa a ler do outro lado. Na sua cobardia, de certo não teriam coragem de dizer as mesmas coisas presencialmente. Escondem-se no anonimato de um perfil falso, escudam-se na distância do interface e, mesmo quando assumem a sua identidade, defendem–se com o argumento de que a internet é mesmo assim e que é pura ingenuidade tentar contrariar as “normais” demonstrações de ódio online.
E depois temos os comentadores de sites e páginas de notícias… Aqueles que fazem crer os mais incautos que vivemos num país em que a extrema- -direita impera, que nos fazem querer emigrar, cultivar a misantropia, ou (muito melhor) desligar a internet.