Nesta história ninguém é inocente. Fui convidado a estabelecer uma colaboração regular com a VISÃO, algo que me honra e me deixa muito contente. O único senão é que acho que chega tarde. Não quero com isto dizer que, por ser eu em particular, devesse ter acontecido mais cedo. O que quero dizer é que convites destes a pessoas da minha geração ainda são raros, reflexo de um atraso recorrente em Portugal onde não é prática comum dar voz a quem tem a garra de vir com ideias, projectos e visões novas. Quando se lhes dá voz é por vezes tarde demais. Esta tendência deixa-me preocupado. A comunicação social tem a sua quota de responsabilidade, porque no final de contas parece que só nos dá tempo de antena quando já temos exposição. É verdade que é da sua natureza mediatizar aqueles que já são mediáticos, mas esta tendência preocupa-me por dois motivos. Por um lado, deixa de fora muitas vozes novas que têm algo a dizer mas que ainda não se tornaram notícia. Por outro, reflecte um certo contrato implícito em que as vozes que nos entram em casa pela TV, pelas revistas, jornais e internet já são, de certa forma, filtradas. Isto é, de uma certa maneira já foram absorvidas e integradas no sistema dominante, impedindo-as de serem realmente cruas e independentes na altura de abordarem assuntos que possam comprometer a sua subsistência ou estatuto. Todos sabemos que a imparcialidade dos meios de comunicação é constantemente posta em causa pelos grupos económicos que os detêm, e que raramente vemos uma notícia abordar assuntos ou uma coluna de opinião tomar posições que possam embaraçar ou comprometer os seus interesses. Os comentadores, sejam eles de esquerda ou de direita, têm a sua coluna paga por esses grandes grupos; os jornalistas os seus salários; isto pode criar sérios entraves à difusão de opiniões e notícias realmente independentes e democráticas. Há, naturalmente, comentadores e jornalistas que não se deixam condicionar, que tudo fazem por manter a sua integridade e a da sua profissão, mas infelizmente pouco podem nesta luta. No caso dos jovens, sobretudo desconhecidos, esta questão nem se coloca, pois ainda não conquistaram o seu lugar ao sol. Quão livre, democrático e independente é, então, o sistema em que vivemos? O que é que se perde ou se compromete quando se aceita este acordo implícito em nome do conforto, dos interesses económicos que gerem os meios de comunicação ou de forças maiores que se apresentam como garante da estabilidade? O que se perde em não dar-se voz às novas gerações?
O caso de Luaty Beirão (também conhecido como Ikonoklasta), artista que admiro e oiço desde que conheci o seu projecto Conjunto Ngonguenha por volta de 2004, é algo que me faz pensar na disfuncionalidade deste sistema. Para ele, a atenção mediática parece vir tarde; esperemos que não seja tarde demais. Ao escutar as músicas que tem vindo a compor nos últimos dez anos, torna-se evidente que o seu discurso foi-se tornando cada vez mais crítico, cada vez mais cáustico. Torna-se evidente que a sua frustração perante as incertezas do país onde vive foi-se tornando cada vez maior, de música para música, de investimento para investimento, de mentira para mentira. Luaty surge-nos como alguém que, perante um muro gigante que lhe corta o caminho para a liberdade, vai berrando cada vez mais alto na esperança que alguém o oiça do outro lado. Um grito de humanidade e resistência perante o abuso, perante o silêncio movido pelos enormes interesses que condicionam uma voz livre. Um silêncio que culmina agora num acto que revela que ninguém é inocente na sua encarceração. Estaria ele na ordem dia, teria ele sido alvo desta exposição mediática, destes artigos e reportagens, destes directos na TV e colunas nas revistas e internet caso não tivesse que extremar a sua posição ao ponto de colocar a sua vida em jogo pela liberdade de ter uma voz?
O hip-hop lusófono, que tem tido uma enorme influência na minha vida, assim como muitas outras áreas de criação marginal, tem imensos artistas (como General D, Chullage, Valete, ou Halloween, para citar alguns; muitos dos quais com quem já tive o prazer de trabalhar) que têm sabido exprimir as preocupações da minha geração, mas são poucos aqueles que conseguem ver a sua voz chegar ao mainstream da nossa sociedade, aos meios de comunicação que dizem representar o pluralismo mas que, na sua maioria, apenas reflectem o sistema dominante, mediatizado, e os seus vastos interesses. Há vários motivos para que isto aconteça, da indiferença ao paternalismo. O problema é que, em certas circunstâncias, quando não nos ouvem, há tendência para recorrer a posições extremas, para tomar decisões movidas pelo desespero ou, em certos casos até, de grande coragem. A atenção que agora é dada ao Luaty devia ter-lhe sido dada muito antes. Antes de se ver forçado a tomar esta posição extrema em nome de uma liberdade e justiça que cabe também a nós defender. Uma liberdade e justiça que a comunicação social, comprometida que está com os seus interesses, tardou em reclamar. O que aqui está em causa não é a sua nacionalidade, mas sim a sua condição humana. De Angola a Portugal ninguém é inocente perante o Luaty e os seus 14 colegas acusados de preparar um “golpe de Estado”. Não há mãos limpas nesta história, mas ainda podemos agir. Ainda não é tarde demais. Da comunicação social a todos nós cidadãos, urge pressionar. Política, social e economicamente. Em nome da liberdade, da sua voz e da sua vida temos de agir. Já.
Nota: Esta crónica foi escrita antes de ter sido revelado esta manhã que Luaty Beirão decidiu interromper a greve de fome que adoptara durante 36 dias como forma de protestar contra a sua prisão preventiva e de outros 14 activistas em Angola, uma notícia que saúdo com imensa alegria. O facto de o ter feito por vontade própria, aos olhos dos media e do mundo, apenas reforça a sua posição em nome da justiça e o seu gesto de resistência contra o seu abuso. A batalha mediática parece ganha por agora, mas apenas após ter adoptado uma forma extrema de sacrifício para ser ouvido. Um gesto que creio merecer séria reflexão.