E este calor que não se aguenta? Estas raízes minhotas e beirãs, uma certa maturação anglófila ou a melancolia da gravata concorrem para que prefira, tendencialmente, o frio. Ou o Inverno, como em tempos se chamava aos meses que iam de Novembro a Março.
Algures em Abril, dei por mim num estabelecimento de saúde:
— “Não se preocupe que a partir das 10:00 já se pode circular à vontade.”, diz a jovem profissional de cuidados médicos.
— “Pois. Ainda apanhei uma valente chuvada.”
— “Estou a ver, estou a ver! Isto hoje não se percebe o tempo.”
Silêncio.
— “Percebe…”, suspensão e — “…Abril, águas mil!”, remato, muito satisfeito por sacar do chavão popular para justificar reservas em relação às unanimidades que alimentam o alarmismo social.
— “Também é verdade. Mas no ano passado, por esta altura, já estava na praia. Não é que estivesse um Sol de Verão, mas já dava para dar uns mergulhos”, a rapariga ignorava por completo o ridículo da sua própria recordação. Não há pudor quando se trata de exibir entusiasmos estivais em pleno Abril.
Mas isso não constitui problema. Porque a grande questão que esta pequena troca de ideias de elevador esconde não é tanto o grande medo humano de que tudo, até o tempo, seja sintoma de um colapso iminente. É o magnetismo que a praia exerce sobre o lisboeta. O problema não é o tempo estar assim ou estar assado: ao primeiro raio de sol lá vai o lisboeta, de Ray-Bans e Paez, rumo ao esplendor dourado dos areais das redondezas. É esse abismo balnear que justifica as suas melancolias eco-ansiosas. Quando o sortilégio geográfico que nos calhou na rifa deveria, pelo contrário, motivar a mais viva e funda gratidão.
Ainda não tinha tido a oportunidade de confessar, em público, esta desconfiança meteorológica que me foi crescendo no cocuruto. Indistinguível, hoje, dos quistos sebáceos que por lá moram. Oportunidade não tem faltado. Porque tudo, absolutamente tudo, meus amigos, cabe nesta moldura imensa e vaga, que alguém baptizou de “alterações climáticas”.
Quando Al Gore resolveu relançar a sua carreira política como profeta da desgraça chamavam-lhe “aquecimento global”. E eu, que já então nutria desprezo por quase todos os entusiasmos colectivos, limitei-me a observar. À medida que as previsões iam falhando e o tempo não aquecia assim tanto, uns poucos abriram os olhos para o óbvio. O termo era curto, comezinho, indigno de tanto pânico, e fizeram uma actualização. Rebranding, diriam os vendedores de banha-da-cobra. E passou-se a chamar-se “alterações climáticas”. Um faneco de jargão prestadio e eficiente onde cabe o frio, o calor, a seca e o dilúvio. Tudo e nada.
Arrefeceu? Afinal está mais quente? Um furacão na América do Sul? Uma insolação no Algarve? Antes, havia títulos mais belos e menos exaltados para estas variações. Eram as estações.
Dividiam-se em quatro e escreviam-se com maiúscula. De tal modo espicaçavam o engenho do homem que Vivaldi compôs o seu Magnum Opus. Foi até à conta dessas quatro maravilhas da diversidade natural, que um certo pizzaiolo, algures no século XIX, resolveu dividir ingredientes, consoante a sazonalidade, em cima de um bocado de massa. Se isto não é graça, nada mais será.
Eis o que quero dizer: a poesia dos nomes tem uma relação íntima com a poesia das coisas. Não se imagina um cozinheiro que ousasse criar uma “Feijoada das Alterações Climáticas”. Nem compositor que se prestasse a escrever uma sinfonia com esse título miserável.
A propósito do calor patético dos últimos dias, que se faz passar por presságio do Apocalipse, alguém me mandou uma daquelas montagens “antes e depois”. Lado a lado, duas infografias: uma dos anos 90, outra de agora. Na mais antiga solzinhos tipo emoji pontilhavam um mapa verde-claro da Península Ibérica. Um bom humor em Paintbrush. Na mais recente, umas sinistras nódoas de vários matizes que iam de vermelho-lava a encarnado-drácula, faziam da Península uma Mordor a latejar. Era como se Deus tivesse decidido, de uma vez por todas, pôr fogo nisto tudo.
Tenho para mim que o ponto é ainda outro, mais obscuro, antigo como a nossa natureza caída. Ei-lo: só estamos bem a dizer mal. A pobre auxiliar de saúde que me acompanhava no elevador para o 2º andar do Hospital queixava-se porquê? Não era tanto da falta de praia em Abril quanto porque sim. É isto que as pessoas fazem desde que nos foi vedado o Jardim do Éden. Queixam-se. Porque a queixa é fundamental para perseverar, neste vale de sombras a que chamamos vida. Porque nos recorda, ainda que vagamente, no fundo de nós, que um dia houve qualquer coisa melhor. Qualquer coisa boa.
As “alterações climáticas”, como a ciática, a inflação, os meus quistos sebáceos, etc., etc., são uma válvula de escape. Tendemos a falar sobre o tempo, verdade. Como tendemos à lamúria. Esperando outra estação. O que se perdeu.
Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.
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