Eu gosto é da Primavera. Aqui na Alemanha ela chega (como em muitos outros sítios) em Março e sempre com estrondo. Uma explosão de verde e outras cores por todo o lado. As magnólias carregadas de branco e rosa, assim como algumas cerejeiras japonesas e outras espécies. Tulipas vermelhas e amarelas a rasgar pelo chão assim como os crocus violetas. As glicínias, violetas também, a derramar pelas varandas (a nossa invade-nos a casa pelas janelas). As florestas de repente cheias de folhas novas, muito verdes. Os pássaros numa chilreada e num frenezim maluco por todos os lados. A malta a invadir os centros de jardinagem para comprar potes de plantas para revitalizar os jardins. A Primavera é mesmo imponente por aqui, mas não é sobre isso a minha crónica.
Imagine, se quiser, um dia sair de sua casa, vestido com umas calças (boca de sino), colete e casaco de veludo preto, botas, e um chapéu de abas largas e um pau na mão, com 5 euros no bolso, uma muda de roupa interior, um livro branco, e mais nada, para só voltar passados três anos e um dia, e nesse tempo caminhar pelo país a oferecer serviços de carpintaria por onde passa em troca de comida e dormida. Sem telemóvel. E no dia em que voltar ter apenas os mesmos 5 euros no bolso.
Parece ridículo, coisa do passado.
E de facto é, mas aqui na Alemanha é uma tradição que ainda se mantém viva. É o que fazem alguns jovens (maioritariamente rapazes, atualmente rondam algumas centenas), no início dos seus 20 anos, depois de fazerem a sua aprendizagem na arte da carpintaria e outros trabalhos artesanais.
Trata-se de uma tradição de origem medieval, que permitia aos jovens aprendizes de artesão ganharem experiência suficiente para adquirirem o título de mestres, junto do grémio que controlava a sua profissão nesses tempos, e assim poderem estabelecer-se por conta própria.
Um dos efeitos colaterais destas migrações profissionais era a disseminação de estilos e técnicas artesanais pela Europa. Uma outra expressão para esta atividade é “Ir à Valsa” (“auf die Walz”) e ilustra o caráter errante da viagem.
Com o tempo, a atividade começou a ser organizada por fraternidades que definiam regras para evitar que estes jovens fossem confundidos com vagabundos. Algumas regras estabeleciam por exemplo que deviam ser solteiros, sem filhos e sem dívidas para evitar que usassem os anos errantes como pretexto para escapar aos seus compromissos. Que sempre deviam usar o traje tradicional (as calças e casaco de veludo, chamado Kluft), e apresentarem-se limpos e afáveis.
O livro branco que levam é o bem mais importante e mais privado que possuem. É o documento oficial de todo o seu percurso e a melhor lembrança que vão reter dos anos passados na estrada. Durante todo este tempo não lhes é permitido aproximar a menos de 50 km da sua terra natal.
Quando se apresentam numa localidade a um mestre carpinteiro ou artesão, este tem a obrigação (pelo menos moral) de lhes dar comida e dormida e trabalho que haja. Viajam pelo país a pé, ou à boleia, ou quando alguma vez tenham um dinheiro a mais, de autocarro.
A sua reputação é impecável e o trabalho que fazem de muita qualidade. São por norma sempre muito dedicados ao trabalho e à melhoria da sua arte e proficiência. São muito habilidosos. O artista Albrecht Dürer, e o industrial Adam Opel terão sido por ventura as mais prominentes figuras que na sua juventude andaram pelos anos errantes.
Num tempo em a tecnologia está a romper as variadas formas como comunicamos, trabalhamos e relacionamos, é estimulante ver alguns jovens viverem com despego e com amor e dedicação a trabalhos de pura natureza manual, e ver as redes de suporte social que os permite vaguear pela terra à procura de oportunidades para se melhorarem.