Era para ser o último artigo do ano, mas parece que vai ser o primeiro do novo ano que acaba de começar. Último ou primeiro, o tempo é propício a fazer inventário e balanço, não tanto a típica crónica do ano em revista ou a lista dos desejos para 2019, que dessas já há muita oferta. Eu estava a pensar em algo mais abrangente, um inventário da minha vida de emigrante. Lo comido y lo bailado como dizem por aqui, uma espécie de “isto já ninguém nos tira!”. Como na canção Oleada da cantora mexicana Julieta Venegas: Y todo lo que ya viví, lo sigo cargando. Lo llevo muy dentro de mí, nunca lo he olvidado”.
Da nossa cultura de nascimento levamos o “pacote completo”, os aspectos positivos e também os negativos. A hospitalidade e o queixume, por exemplo. Até podemos ganhar distanciamento com os anos para avaliar os nossos costumes nacionais de forma crítica, mas nunca perdemos completamente aqueles tiques e comportamentos aprendidos desde a infância. Já no que respeita às culturas de acolhimento, dos países onde temos a oportunidade de viver, podemos escolher as características com que mais nos identificamos/aspiramos/queremos imitar e deixar a um lado os aspectos menos positivos dessa cultura. Podemos, no limite, construir uma versão melhorada de nós próprios. Acredito piamente que viver fora me tornou melhor pessoa, mais sociável, mais generosa, definitivamente menos preconceituosa. Acredito também que viver fora nos permite saber realmente de que pasta estamos feitos. Habituar-nos a viver fora da nossa zona de conforto, dá uma grande tranquilidade relativamente ao que ainda está por vir.
Afinal, o que é que eu aprendi nestas minhas voltas pelo mundo?!
De Espanha levei a cor, do Brasil a musicalidade e do Chile aprendi a apreciar o ar do campo. Aprendi muitas coisas mais, mas estas três coisas são símbolos de algo maior. Recordarei sempre Madrid com as ruas cheias de gente e as pessoas a falarem alto. Homens de calças salmão, senhoras de pullover roxo tipo “Senhor dos Paços”. Meu Deus, como os madrilenos se pelam por algo roxo tipo “Senhor dos Paços”. E o estampado às pintinhas, bem sei, não é uma cor, é um padrão, mas não deve haver nada mais optimista do que um vestido às pintinhas. As velhotas de fato às pintinhas e leque a condizer, a tomar jolas com batatinhas fritas nas tardes de verão. Costumava brincar com uma amiga que só voltava para Lisboa quando nas históricas casas de chá lisboetas passassem também a servir minis. É que quando eu for velhota quero ter um vestido às pintinhas… e tomar jolas! A cor é o símbolo de um certo optimismo, de uma certa determinação em pasarlo bien. Uma forma bastante pragmática de ver a vida e de andar para a frente. Com ganas.
Do Brasil levei toda uma coleção de expressões idiomáticas e refrães de canções MPB que ainda hoje recordo nas mais variadas situações. É como se o Brasil tivesse posto banda sonora na minha história de vida. Uma grande sabedoria popular. No Brasil foi onde senti o maior choque cultural, apesar da (ou precisamente por causa da) língua ser a mesma. Posteriormente, assisti a situações idênticas entre espanhóis e chilenos. A frontalidade espanhola, que tanto aprecio, criou-me ao início algumas dificuldades deste lado do mundo. A língua é a mesma, mas a cultura é diferente, a forma de associar e transmitir as ideias pode ser muito diferente. É fácil julgar os outros à luz de clichés culturais e estereótipos, difícil é escutar o que têm realmente para nos dizer. Noutra vida, dedicar-me-ei à antropologia.
A musicalidade prende-se também com a capacidade para apreciar o presente. Para alguém como eu, para quem planificar é uma espécie de religião, essa capacidade tão brasileira de viver no presente, de forma coletiva sem passado e sem futuro, foi outra grande aprendizagem. Pode soar um tanto místico, mas há coisas que são maiores do que nós. Por mais planos que se façam, nós não controlamos tudo. Conseguir parar, o aqui e o agora, a capacidade de descomplicar. Aquele: “Lá na frente a gente logo vê!”. É mais fácil escrever do que fazer, afinal eu sou aquela que organiza as férias numa folha Excel…
O que dizer do Chile? O Chile foi o país onde nasceram os meus filhos e, por isso, ocupará sempre um lugar à parte nos meus afetos. Talvez tenha sido o efeito da transição do bulício de São Paulo para a muito mais pacata Santiago, mas ao início a cidade parecia-me um tanto sem alma. As pessoas um tanto desconfiadas. Tal como a canção do Caetano sobre Sampa, “quando eu aqui cheguei, eu nada entendi”… Santiago tem mais ou menos o mesmo tamanho que Madrid em termos de população. Aquele tamanho que lhes permite às cidades serem cosmopolitas e provincianas em partes iguais. É preciso aprender a olhar, a conhecer. Se São Paulo era brilho e “beijinho no ombro”, Santiago tem os pés assentes no chão. As pessoas são meio desconfiadas, é certo. Um pouco como os portugueses. Porém, ao contrário do queixume luso, os chilenos parecem-me mais empreendedores. Apesar da aparente estabilidade do país, sobretudo se comparado com o resto da região, existe o medo generalizado de que “vem aí o lobo”, o medo da próxima crise económica. As pessoas têm medo de perder o emprego. Tenho uma colega de trabalho que nunca tira todos os dias de férias a que tem direito por lei, para na eventualidade de (e se!) um dia for despedida lhe pagarem esses dias não gozados e assim ir para casa com um dinheiro extra. Outros compensam o medo a perder o emprego, desenvolvendo pequenos negócios on the side.
O Chile tem uma costa extensíssima e grandes batalhas navais nos seus livros de história, no entanto os símbolos maiores da alma chilensis estão no seu interior. Na terra. A cordilheira dos Andes, omnipresente. O huaso, esse pastor de vacas da zona central. O cobre que se extrai das entranhas do deserto… Quando digo que o mais me tem marcado nestes anos a viver no Chile foi aprender a apreciar o ar do campo, não estou só a falar do ponto de vista turístico. Talvez porque eu sou uma urbanita a muerte, esta ligação à terra é para mim também um símbolo. A paisagem no Chile é por vezes extrema. É muito bonita quando vamos de visita, mas não deve ser fácil viver no deserto, não deve ser fácil trabalhar na região mineira, como também não deve ser fácil superar os invernos e o isolamento na Patagónia. Estabelecer-se nestas paragens requer tenacidade, uma certa teimosia. Talvez a dureza desta terra explique essa forma de ser entre o desconfiado e o precavido. Santiago pode parecer cosmopolita, mas tem a mentalidade deste campo agreste. Admiro muito a teimosia dos chilenos.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: 6 meses aproximadamente…
Nas notícias por aqui: A sucessão de demissões no seio dos Carabineros na sequência de uma operação policial em que morreu um cidadão da etnia mapuche (caso Camilo Catrillanca).
Sabia que por cá… não se celebra o dia de Reis. O bolo rei que por cá se arranja, são contatos passados de boca em boca (de fórum em fórum do Facebook) entre a comunidade espanhola que aqui reside.
Um número surpreendente: Este ano vou cumprir 6 anos a residir no Chile.