Parece o início de uma piada, mas não é. No outro dia, antes do jogo de futebol entre a Alemanha e a Suécia, estava a ouvir um programa de rádio no carro e o locutor estava a entrevistar um Alemão especialista em coisas Suecas e a perguntar-lhe o que é que os Alemães tínham a temer em relação aos Suecos. O entrevistado disse que a principal característica dos Suecos que os tornava fortes era uma grande auto-confiança, em alemão “Selbstbewusstsein”.
Depois vi o jogo.
E se o leitor também viu, o que se passou foi uma Alemanha inicialmente nervosa que levou um chapéu dos Suecos atrevidos aos 30 minutos, e depois na segunda parte, uma pressão intensa que resulta num primeiro golo de Marco Reus logo aos 3 minutos, depois um cartão vermelho a Boateng que era quem estava a meter as bolas todas no ataque e depois aos 95 minutos, no último possível momento, o golo da victória, num livre perfeito de Toni Kroos, que mantinha os Alemães no Mundial, com renovada energia, e renovada esperança de revalidarem o título.
Desde essa altura tenho estado a pensar nisto.
É que se me estivessem a entrevistar na rádio, antes de um jogo entre Portugal e Alemanha e me perguntassem o que tornava os Alemães mais fortes, talvez teria usado essa mesma palavra, “Selbstbewusstsein”. Só uma enorme dose de “Selbstbewusstsein” é que permite aos Alemães darem uma cilindrada de 7 a 1 ao Brasil, no Brasil.
Ser “Selbstbewusst” não é apenas ser auto-confiante, é ter auto consciência (self-awareness) das suas capacidades únicas, e sentir que para conseguir algo, uma pessoa dependente em primeiro lugar de si própria, depois dos parceiros e família, depois dos camaradas, depois dos colectivos, e só depois do país e das instituições, etc. Quando os alemães deram a volta ao jogo com a Suécia, a jogar com um a menos, sabiam que dependiam de si próprios. Não sentiram pena de si próprios por terem apenas alguns instantes para dar a volta ao jogo, não se resignaram à condição de underdogs, de quem nada se espera. Continuaram a fazer o que tinham que fazer até atingirem o objectivo.
Demasiado “Selbstbewusstsein” descamba em arrogância e foi o que fez com que perdessem surpreendentemente com a Coreia do Sul no jogo a seguir, e fossem repatriados mais cedo deste Mundial. Acharam que eram favas contadas, porque eram a Alemanha… Bom, entretando os Suecos chegaram aos Quartos de Final com uma boa dose de “Selbstbewusstsein”!
Quando eu era um miúdo de 7 ou 8 anos, era doido pela série televisiva Galactica, a original. Desenhava as naves Viper em papel e fazia planos de um dia construir uma. Brincava com o meu amigo Francisco que pilotávamos as naves sentados nos ramos de uma árvore no pátio da nossa escola. Eram os anos em que os vôos do Space Shuttle e os astronautas a fazerem passeios espaciais eram notícia no Telejornal. Nos meus sonhos flutuava pelo ar, e inevitavelmente, um dia disse ao meu pai que iria ser astronauta (parecia ser o passo intermédio necessário para depois passar para a piloto da Galactica). Ainda hoje lembro-me perfeitamente da resposta: “Devias ter nascido Russo ou Americano”.
Cresci, não por causa do meu pai, mas acho que por causa do sentimento geral, com a sensação de que ser Português (pelo menos desde o fim do Império) já não é suficientemente bom. Que ser Português é à partida um impedimento, um handicap. E hoje em dia acho que se trata de um fenómeno psicológico colectivo. Basta ver a quantidade de notícias em que, por algum feito extraordinário, se proclama que afinal somos “tão bons ou até melhores” que os outros.
Mas não é só um complexo de inferioridade nosso, é também um complexo de superioridade dos outros, dos nórdicos auto-confiantes. Alemães com prémios Nobel e campeões, há aos pontapés, mas ninguém espera nenhum feito extraordinário de um Português, por isso quando algum o consegue, como o Ronaldo, ou o Mourinho ou o Salvador, são Deusificados pelos portugueses, mas parecem arrogantes para os outros (perdi a conta à quantidade de vezes que já tive que os defender de acusações de arrogância). Mas acho que o que se passou com estas pessoas, estes Portugueses que fizeram coisas extraordinárias, foi que foram expostos ao que se passa lá fora, e viram que os outros são também tão bons ou tão medíocres como eles e perceberam que dependiam de si próprios e do seu trabalho e talento para conseguirem atingir os seus objectivos ou sonhos. Mas são celebrados pelos compatriotas como se tivessem atingido algo contra todas as possibilidades e a apesar de serem, coitados, Portugueses. É tão importante para nós termos o melhor futebolista do mundo (viram a conversa entre o nosso Presidente e o Trump?). Em geral países com crises de identidade tendem a desperdiçar a maior quantidade de dinheiro a fazer as melhores e maiores coisas do mundo. Países auto-confiantes fazem apenas a coisa certa e não têm nada a provar, e por isso acabam por ser melhor.
Tive a sorte de que em 1992, no ano em que fui para a faculdade, começou-se a lecionar Engenharia Aeroespacial no Técnico em Lisboa. Aqui estava a minha oportunidade de aprender a construir as tais naves da Galactica e entrei para o curso. Em 2005 estava a “pilotar” remotamente o meu primeiro satélite em direcção a Vénus. Em 2009, a Agência Espacial Europeia (ESA), para a qual eu já trabalhava, abriu concurso público para recrutar astronautas. E juntamente com outros 10.000 candidatos de toda a Europa, eu no pico das minhas capacidades físicas e psicológicas (e com a cabeleira ainda intacta), mandei a minha candidatura imaginando vir a ser o primeiro astronauta Português e a provar que o meu pai estava enganado. Eu e outros 1000 fomos chamados às primeiras provas de selecção. Passei e fui à ronda de exames psico-técnicos seguintes já só com outros 200. Daqui passaram uns 40 para os exames médicos e entrevistas finais, e eu fiquei pelo caminho. No fim, seleccionaram 2 Italianos, um Alemão, um Francês, um Britânico e um Dinamarquês. Acho que fiz uma boa prova, e não senti em algum momento que tivesse menos condições que qualquer dos outros que estavam a fazer a prova comigo. No entanto, quando soube que não fui escolhido, resignei-me ao facto de que sendo Português, mesmo que tivesse passado mais uma ronda, no fim, nunca teria sido seleccionado.
Por comparação, o Alemão que foi seleccionado, que não era nenhum Einstein, sabia que dependia apenas de si próprio e a questão de nacionalidade nunca lhe passou sequer pela cabeça. Ele nunca sequer tinha feito grandes planos de ser astronauta. Ele estudou Geofísica e era especialísta em vulcões, e talvez achasse alguma piada ao espaço. Quando a oportunidade apareceu concorreu e deu o seu melhor. Se alguma vez disse ao seu pai que queria ser astronauta, o pai concerteza lhe disse “Então esforça-te e trata de ter boas notas já!” – Os alemães já tinham astronautas desde 1978 (Sigmund Jähn na DDR e Ulf Merbolt na FDR), e qualquer miúdo naquele tempo sabia que podia ser o que quisesse. Enquanto escrevo esta crónica com os pés bem na Terra, o Alemão, Alexander Gerst, está lá em cima a comandar a ISS.
O problema com este nosso handicap, é que gera isso mesmo, resignação. Ou se tem um talento fora do normal aliado a uma grande força de vontade para singrar, ou então não vale a pena, porque à partida já estamos com um pé atrás. Resignamo-nos de que os outros são melhores, que o patrão é que sabe melhor, que o ministro é que sabe disto, que o que diz o senhor doutor é que deve estar certo, e que o Alemão é que é o melhor e merece ser Campeão. A partir deste momento deixamos o nosso destino nas mãos os outros. Sujeitamo-nos a ser usados e permitimos corruptos glorificados a andarem impunes – na Alemanha também há corrupção e em grandes proporções, mas a maneira como se lida com os casos descobertos, pela sua (dos Alemães) auto-consciência e auto-confiança, é diferente: as pessoas envolvidas, sejam quem forem, acabam efectivamente na cadeia. Não há engonhanço.
O mesmo fenómeno de resignação acontece não só pela nacionalidade, que é um problema psicológico, mas pelas condições sócio-económicas dentro dum mesmo país, ou mesmo por deficiência física, ou por discriminação pela cor ou sexo, estes sim que são problemas reais. Quem tem um pé atrás ou resigna-se a perder, ou precisa de uma enorme bagagem de talento e vontade. Se és pobre ou diferente tens que primeiro chegar à frente, saltando enormes barreiras, para partir em igualdade com os outros e ter uma oportunidade justa. Daí que é tão fundamental combater desigualdade. Os povos nórdicos percebem isso, e os escandinavos são campeões em igualdade social, e os alemães em certa medida, também. Não há cá tanta hierarquia e nem tanto orgulho ou tanta vergonha em estar associado a um determinado degrau da escadaria social. Não há tanta subserviência ou deferência (daí que o serviço nos restaurantes seja péssimo). Não há tanta diferença entre homem e mulher (daí Angela Merkel).
Felizmente que, no que respeita a nacionalidade, o futuro parece melhor que o passado. Ser Português continua ainda a ser um handicap. Mas há uma nova geração que já percebeu que dependem essencialmente de si próprios para singrar fora, em outras áreas, para além do futebol ou das artes. Quando cá cheguei à Agência Espacial em 2003, havia aqui já um outro Português, chamado Nuno Sebastião, um pouco mais novo que eu, a desenvolver sistemas informáticos. Era muito dinâmico e ambicioso. Tornámo-nos logo amigos e naqueles anos ainda antes de chegarmos aos 30, sermos tugas aqui nesta comunidade muito internacional era sinónimo de grelhar peixe e fazer feijoadas, e perder a final do Euro com a Grécia, mas era menos sinónimo de engenharia de qualidade ou excelência técnica. O Nuno logo percebeu que aqui qualquer um era tão bom ou tão medíocre como qualquer outro, Português ou não. Percebeu que se quisesse ir mais longe teria que depender de si (e da sua família), da sua criatividade e da sua enorme força de vontade. Montou uma primeira firma para prestar serviços à Agência, depois foi seleccionado como staff permanente da ESA, fez um MBA em Londres, cresceu uma rede de contactos, e juntamente com dois companheiros igualmente motivados e talentosos, desenvolveram um plano de negócio muito inovador com tecnologias novas de Machine Learning que recebeu prémios e reconhecimento, deixou a Agência para trás, criaram do chão uma start-up chamada Feedzai, que passados 10 anos emprega mais de 250 pessoas, levantou investimentos bem superiores a 50M€, tem escritórios em Portugal, Sillicon Valley, New York e Londres, e partilha o palco em eventos tecnológicos internacionais com Steve Wosniak, Stephen Hawking, e outros gurus.
Se ele me tivesse dito, no ano em que nos conhecemos, que queria ser um milionário tecnológico de Sillicon Valley tipo Zuckerberg, eu ter-lhe-ia dito que devia ter nascido Americano. Assim sendo, fico feliz por que ele me teria provado que estava enganado. Como ele, muitos outros jovens e talentosos engenheiros e cientistas portugueses estão neste momento a preencher posições relevantes na Indústria, Instituições e Academia internacionais, com uma boa medida de sucesso.
Pobreza e discriminação são handicaps reais que temos que travar, país de origem é um handicap psicológico colectivo que temos que deixar de lado. Temos de adquirir uma dose saudável de “Selbstbewusstsein” (sem cair na arrogância) e nos tornar auto-confiantes e auto conscientes das nossas capacidades de trabalho e julgamento, e não ter receio de as usar, só assim vamos fazer as coisas certas (quer seja a criar Indústrias, a proteger o ambiente ou a combater a praga dos incêndios) e deixar de estar do lado errado das estatísticas. Nessa altura, Portugal ser Campeão de Futebol deixará de ser um feito extraordinário. Talvez seja tarde de mais para me tornar astronauta, mas bem a tempo para os meus filhos e para os vossos.