Eu cresci numa época em que em Portugal não havia tanta oferta, nem variedade em termos de opções de consumo como “lá fora”. Quem podia viajar e ir a esse “lá fora”, costumava guardar um dia só para fazer compras e trazer “lá de fora” as mais variadas coisas que não havia por cá, ou que eram simplesmente muito caras em Portugal.
Lembro-me da nossa primeira televisão a cores, uma Grundig que os meus pais trouxeram “lá de fora”, no caso, de Düsseldrof. Continuou a emitir uns bons meses a preto e branco até começarem as emissões a cores em Portugal. Lembro-me também de vários brinquedos trazidos “lá de fora”. Havia sempre alguém, que conhecia alguém que trazia biquínis do Brasil, ou jeans dos Estados Unidos e organizavam-se umas feiras informais na casa de alguém, normalmente a ama lá do bairro, que tinha uma creche clandestina em casa e que conhecia toda a gente. E o que dizer dos relógios falsos de Chinatown e das máquinas fotográficas e dos walkman que vinham também “lá de fora”?! Tudo isto são memórias distantes, perfeitas para um guião de série televisiva sobre os anos 80 em Portugal, contudo, aqui deste lado do charco fruto das fronteiras, taxas alfandegárias, taxas de cambio e dos altos e baixos da politica na América Latina, viajar para ir às compras “lá fora” é ainda uma realidade.
Ainda nos meus anos de São Paulo, depressa me dei conta de que o preço dos produtos importados no Brasil, desde um simples chocolate até chegar num computador, eram proibitivos. A classe média começava a viajar de férias para o estrangeiro, muitas vezes com o único propósito de comprar “lá fora”, desde o vestido de noiva, ao enxoval do bebé. “Lá fora” era, sobretudo, Miami.
Quando me mudei para Santiago do Chile, a cidade enchia-se de turistas brasileiros em meados de Julho, que coincide com um período de férias escolares no hemisfério sul e com a temporada da neve. Podia ouvir as famílias de turistas no supermercado, nas secções de para farmácia, nas lojas de roupa a comparem os preços. Com o deterioro gradual da situação política e económica no Brasil passaram a chegar menos turistas brasileiros a Santiago. Em compensação, começaram a chegar os turistas argentinos. A maioria vem nas férias de verão, entre Janeiro e Marco. O gradual fim das restrições cambiais entre o peso argentino e o dólar dos EUA, assim como das limitações à compra de moeda estrangeira por parte dos cidadãos argentinos, trouxe um maior fluxo de turistas argentinos ao Chile. Também um fluxo mais democrático, pois da Argentina pode-se chegar ao Chile de carro, cruzando a cordilheira dos Andes. O entreposto fronteiriço mais próximo de Santiago, o Paso Libertadores, fica a duas horas de distância da fronteira (mais duas horas até à cidade mais próxima do lado argentino, Mendonza).
Segundo a imprensa local, os argentinos gastam o triplo nas suas viagens e compras no estrangeiro do que nos centros comerciais na Argentina. São verdadeiros profissionais da arte de comprar “lá fora”, vão às compras com a mala de viajem atrás. Como se não fosse possível identifica-los pelo seu sotaque tão diferente do chileno, basta observar as famílias inteiras a passear pelos centros comerciais de Santiago com a bendita mala de porão pela mão, uma por adulto. E toca a comprar até encher a(s) dita(s) mala(s).
Durante os últimos dois anos o Chile foi a nova Miami!
Diz-se até que a afluência à visita do Papa Francisco em Janeiro passado ficou aquém do esperado, porque de todos os argentinos que cruzaram a fronteira nesse período, a maioria não foi ver o Papa ao contrário do que se esperava, mas foi, isso sim, aproveitar os saldos de verão.
Muito se tem escrito por cá sobre o possível fim desta época dourada para o comércio no Chile. Este ano, com a redução das taxas alfandegárias na Argentina para a importação de computadores, notebooks e outros artigos tecnológicos de 35% para zero, irá produzir-se uma redução dos preços finais destes produtos na Argentina, tornando menos atrativa a compra dos mesmos no estrangeiro.
Porém, nem só de preços baixos vive o comércio, a variedade é também muito importante. Ir às compras no Chile é como fazer um pequeno passeio pelo mundo. As montras e expositores encontram-se repletos de produtos importados. Fun fact: o Chile é o país com maior número de tratados de livre comércio na região. Mesmo com as diferenças de preço a reduzirem-se para alguns produtos, o Chile vai continuar a ser atrativo para fazer compras pela oferta de marcas internacionais que (ainda) não chegaram à Argentina.
Visto de fora
Dias sem ir a Portugal: 1 ano e 1 mês aproximadamente
Nas notícias por aqui: A demanda territorial interposta pela Bolívia contra o Chile que está a ser julgada no Tribunal Internacional de Haya.
Sabia que por cá…. O Colo Colo do Chile perdeu contra o Delfín do Equador num jogo para a Taça Libertadores… Dizem que é uma vergonha nacional.
Um número surpreendente: Em 2017, comprar um smartphone no Chile era 89% mais barato do que comprar o mesmo telefone na Argentina.