Não sou boa nem com nomes, nem com datas. Esqueço os aniversários e troco os nomes dos amigos. Amigos de anos. Quando conheço alguém, nunca lhe decoro o nome e, profissionalmente, fui aprendendo a safar-me de situações constrangedoras.
Das datas importantes sei as (muito) básicas. Natal, 25 de Dezembro e o Dia da Liberdade, 25 de Abril. Já liguei um mês depois à melhor amiga para lhe desejar os parabéns, já felicitei amigos muito próximos três dias depois.
Assumindo esta memória de peixe, há, no entanto, uma data que me ficou guardada. O 7 de Abril de 2014. O dia em que cheguei a Macau.
Não sou de assinalar datas, mas, sem explicação, este dia surge-me todos os anos na memória, e ao contrário do que pensava, cada vez é mais intenso. A cada ano que passa, sinto-o de forma diferente, reflicto mais, questiono-me e analiso tudo o que passou com mais dedicação. Com maior respeito.
Por coincidência, quatro anos depois desse dia, cá estou eu, uma vez mais, entre cadeiras de um aeroporto qualquer. Agora, sem aquele nervosismo, sem a dúvida, sem a incerteza, sem aquele ataque de pânico que me fez ligar à minha mãe para dizer “ISTO É UMA PÉSSIMA IDEIA, ACREDITA EM MIM”.
Na altura a matriarca riu-se e lançou-me, bem ao jeito dela, “oh que disparate, claro que não foi, vais ver que ainda vais gostar de Macau”. Achei-a a falar sem sentido.
Passei a marca dos dois anos com a mesma leveza de um sussurrar. Discreta, em silêncio, fintando as gotas da chuva grossa. Só aos três anos consegui e permiti-me aceitar Macau. Só por si. Por ser Macau.
Aceitar o sítio onde estamos ajuda-nos a viver melhor. Aceitá-lo com os defeitos, com os seus erros estruturais abismais, mas também com as suas vantagens, as suas coisas boas e, principalmente, as suas pessoas. Aceitar-me em Macau permitiu-me estar em paz. Permitiu-me estar num aeroporto qualquer, com vontade de ir para casa, de abraçar quem me espera e de jantar numa tasca qualquer.
Olhar para trás faz-me bem. Foram quatro anos que pareceram seis meses, tal a pressa de passarem. Quase nem notados. Não me é difícil encontrar momentos felizes, tenho-os quase todos os dias. São momentos que têm nomes. Estes, sei-os de cor. Não esqueço. Porque acredito que a grande lufada de ar fresco, de sítios como Macau, é isso mesmo: as pessoas. As que conhecemos, as que nos receberam, as que recebemos, as que se tornaram parte do nosso dia, as que foram embora, mas permanecem, como se aqui estivessem.
Lembro-me de em miúda, e ainda não emigrante, criar um preconceito em relação às comunidades portuguesas. Culpa das histórias que ouvia dos meus amigos a viver no Canadá e em França. Construí em mim, grupos execráveis, deficientes em valores morais, em lealdade, em espírito de entreajuda. Uma vez mais, a minha mãe resumia a cinzas quando lhe repetia os relatos dos primos que só vinham em Agosto. Fui crescendo com essa ideia, e a minha curta passagem por Londres não me permitiu desmistificar o assunto, antes pelo contrário. Dos conselhos que ouvia, um era quase certo, “não confies muito nos portugueses”.
Macau veio mudar tudo. A (minha) verdade é que não sei o que seria de mim se não confiasse nos portugueses que aqui estão. A comunidade portuguesa de Macau é pequena, é fácil conhecermo-nos, ou pelo menos já termos ouvido falar. No entanto, esse tamanho curto não a representa na sua dimensão de entreajuda. Tudo o que tenho ouvido e assistido nos últimos quatro anos é prova disso mesmo.
Não sou pessoa de acreditar no popular “não podemos gostar todos uns dos outros”, mas compreendo que nos seja tarefa muito difícil. Aceito também que nem todos estamos no mesmo patamar evolutivo. Sei que existem boas e más pessoas, bons e maus portugueses, bons e maus amigos. Mas sei, de olhos fechados, que os bons vencem sempre. Que o bem prevalece sobre qualquer outra coisa.
Foi (e continua a ser) aqui, mais do que em qualquer outro lugar por onde já passei, ou até onde nasci, que assisti, por diversas vezes, a movimentações da própria comunidade em prol de alguém, ou de uma causa. Só por isso, por ser a coisa certa a fazer.
A passagem do tufão Hato, em Agosto passado, tornou essa união evidente. Acreditem quando vos escrevo que foi emocionante. Quem não estava na rua procurava soluções, quem estava na rua dava tudo de si pela ordem daquela que é a sua terra emprestada.
Uma família a precisar de ajuda quando a tragédia bateu à porta? Estamos cá todos, uns mais discretos que outros, é certo. Mas estamos todos, da forma que nos é possível.
Alguém acaba de chegar a Macau? Abrimos as portas de casa, apresentamos pessoas e depois, deixamos que a pessoa faça o seu caminho, sem cobranças, sem exigir agradecimentos.
Percebemos aquilo que é o mais importante, que há espaço para todos. Que a união faz a força. Pode não salvar, mas ajuda-nos a ultrapassar.
Macau tem barulho, tem poluição, tem muita gente que se atropela, que segue sem olhar o outro, sem lhe perceber a dor ou as alegrias. Mas Macau tem também esta comunidade portuguesa tão dona de si, tão característica, que tanto ama Portugal mas que defende com unhas, dentes e garras este pedacinho de terra. Como se fosse seu.
Assim, quando olho para trás, Macau é um conjunto de caras, de nomes de pessoas. São as Ineses, os Joões, os Pedros, as Saras, a Leonor, os Santos, os Adelinos, as Filipas, as Isabeis, as Alexandras, as Lilianas, Lianes e Elianes, os Carlos, as Joanas, os Rodrigos, as Ritas, as Cristinas, as Margaridas, os Josés, os Hugos, as Veras, as Danielas, as Andreias, as Fong, as Mak, as Sofias, os Vascos e tantos, mas tantos, outros.
Esta é a maior colecção que um emigrante pode recolher. Pessoas. É por elas que aqui estamos, são elas que nos fazem querer ficar, são elas que nos fazem querer mais. Ser mais.
E, assim, num ápice, são quatro anos disto. São quatro anos deles todos. São quatro anos de um coração a abarrotar de nomes.