Dias antes do Natal, vejo-me em Braga a celebrar a quadra com amizades que aqui nasceram, nos tempos da universidade. Pese a distância e a erosão dos dias, são amizades que cresceram vida fora, fortalecendo raízes ao longo de muitas partilhas, risos e lágrimas. São agora troncos altivos, saudáveis e rijos, parte da minha história e da minha passagem ligeira por este mundo.
Chego mais cedo ao nosso agendado encontro e decido passear sozinha pelo centro da cidade. Não fico sozinha muito tempo. São anos condensados em minutos. Histórias revisitadas a cada passo. Braga mudou as vestes. Está mais bonita, mais europeia. Veste lojas modernas, pastelarias de charme, hamburguerias gourmet. Como se entre os anos em que a deixei e abandonei por outras paragens, ela também me tivesse abandonado a mim, e aprendido muito coisa, vivido e sonhado. Não foi vadia, mas pelas suas ruas foram passando outros muitos jovens, com histórias de amores e desamores semelhantes, descobertas e desânimos, sonhos e desalentos. Ao voltar, eu já não sou nada. Mas aquela calçada para mim é tudo. São os anos de estudante. São o início de uma vida adulta. Nos cafés que ainda persistem fica a memória de conversas eternizadas. Nas ruas iluminadas com as cores do Natal, ocupadas por quem não conheço, reside eternamente o primeiro momento em que cheguei, fresquinha e jovem, a uma cidade já então bela e estranha. Na avenida, feita longa e decorada com canteiros onde antes passavam carros, recordo a noite em que a pisei, de mãos dadas com quem tão cedo partiu. E ao recordar essa perda, a dor que ficou vincada na memória regressa tão viva que me faz por momentos perder o equilíbrio. A vida é frágil, vale pouco, apaga-se em menos de um segundo, silenciosamente e sem cerimónias. Aprendi-o aqui. Nestas ruas onde desvairada corri para o hospital para ter a certeza de um nome, na ilusão de que houvesse um erro, cega pela esperança oca de que a vida lhe continuasse a encher os pulmões. Porque era impossível ser de outra forma. Mas o possível e o provável valeram pouco. Somos folha de papel amassável por um qualquer deus inconsequente.
Ficou aqui muita história minha, acabada e inacabada. A cidade ignora-me como se me tivesse esquecido, mas eu estou lá. Nessa fonte apagada no Inverno, onde cresce uma imensa árvore de Natal. Mergulhei lá, num desfile de curso, molhada de vida, depois de recuperar da morte. Agarro essa imagem e guardo-a de novo em mim, com toda a gente que lá estava e que gostava que aqui estivesse outra vez. Já me tinha esquecido, mas ela, essa imagem, estava lá. Estava lá o momento também em que entreguei orgulhosa um crachá comprado em Londres, a minha primeira aventura de avião, com dezoito anos. Depois percorro as ruas que me levam até onde trabalhei. Em frente, agora em trabalhos de recuperação, a igreja onde um namorado me levou. Ali tínhamos de ver qualquer coisa, creio que uma galinha, e se não avíssemos não casávamos. Creio que não a vi, e rio-me sozinha a pensar que talvez por isso nunca me tenha chegado a casar – pelo menos oficialmente.
Aqui e ali, os meus sentidos cedem a imagens, palavras e sentimentos que não são de agora, mas que ficaram intactos na minha memória. Regressam e tomam conta de mim, violando sem pedir licença as fronteiras do tempo. É então que tenho a certeza que fiquei para sempre ali. Um bocadinho de mim há-de viver nestas ruas que agora brilham enfeitadas, de fachadas recuperadas e cafés novos. A experiência é agri-doce. A magia da partilha de vida em amizades que nunca se perderam e que agora, sem avisar, desfilam com barbas raiadas de branco. Os amores que pareciam tudo e ficaram nada, a não ser um vazio e uma tristeza escondida, ali mesmo, na esquina desta rua que piso.
Chego ao meu destino enebriada. É possível estar aqui e não ser derrubada pelo peso dos anos? Estar aqui e fazer a vida normal, sem digerir a cada passo esta verdade de que somos mais do que cabemos em nós? Como passar pela Brasileira e não lembrar? Pelo Insólito fechado e não entristecer. Pelo silêncio fora do Clube84 e não sentir que algo se perdeu para não voltar. Há realidades que permanecem apenas nossas como se fossem loucura.
Quando abraço quem aqui vim ver e percebo que ninguém está a ponto de perder o equilíbrio, percebo que estar fora é um bocadinho isto. Não acompanhar as mudanças, não ceder à banalidade do hábito. E um dia, ao chegar, apanhar com tudo de chofre e perceber que sim, é verdade… tudo na vida tem um fim.
Mas segundos depois dos primeiros abraços quentes que derretem o frio, a percepção dilui-se. Não é necessariamente um fim, mas uma mudança. Bebo um copo de vinho e, em breve, somos várias a falar umas por cimas das outras, na euforia partilhada de um reencontro anual. E eu estou tão, mas tão contente de estar aqui.