Vive-se neste momento uma espécie de outono em Kuala Lumpur. O céu acorda e deita-se em tons de cinzento quase todos os dias. Raros são os momentos em que o sol irrompe atrás das núvens e se deixa ver, brilhante, quase raivoso pela ausência forçada, quente como parece nunca ter sido. Mas são raros. Em quase todos os dias a luz é baça mas o chão brilha da chuva que cai a jorros pela tarde abaixo. Em casa, as janelas e portas estão abertas todo o dia e, chegada a noite, a ventoinha de tecto, geralmente em furiosa actividade, descansa quieta. Uma brisa tímida intromete-se nas conversas, pousa nos espaços e chega a sugerir um chá quente, em vez de um gin tónico gelado para acabar o dia.
Este descanso da asfixia dos dias tórridos aparece no momento apropriado. O eterno Verão nunca me seduziu. O meu corpo está demasiado acomodado a sentir calor e frio em diferentes momentos do ano e a encarar as quatro estações como uma verdade. Nos anos em que vivi em climas tropicais, todas as células do meu corpo, após os primeiros meses, começam a agitar-se em desconforto. Há uma mentira em redor, um mundo fingido. A verdade é que ao calor há-de suceder o frio, gradualmente. Depois, também de forma gradual, há-de voltar a haver sol quente, a aparecer de mansinho primeiro e completamente descarado no fim. Sem entender de razões e explicações, o meu corpo espera o frio, mais não seja o ligeiro arrepio da pele a pedir um casaco que o cubra. Mas ele tarda, e tarda, e tarda…
A falta do frio é particularmente presente em alturas do ano como esta: a época que antecede o Natal. Pese a maioria muçulmana no país, o Natal já invadiu muitos recantos de Kuala Lumpur. A festa cristã surge despida de conotação religiosa, o que já é comum mesmo em países de maioria católica. O anafado senhor de farta barba branca que veste anualmente o seu fato vermelho, de forro branco e quentinho – não muda de farda mesmo em países tropicais – ganhou o trono do imaginário do Natal. Quer se goste ou não. Como o Inglês é hoje em dia a língua universal deste mundo. Quer se goste ou não. Ele e o seu trenó mágico, puxado a renas com nomes próprios e tão cheio de presentes que só mesmo a magia os equilibra, uns em cima dos outros, quando ele rompe o céu.
Nos muitos centros comerciais da cidade, as decorações natalícias são exuberantes. Há muitas celebrações culturais na Malásia, fruto das suas diversas culturas, nomeadamente a malaia, a indiana e a chinesa. Em cada uma dessas celebrações, os centros comerciais reinventam-se. Há exuberância de cores no festival das luzes indiano e mandalas feitos de arroz colorido no chão, magníficos e tremendos exemplos da possível beleza, finitude e futilidade da nossa existência humana. No ano novo chinês proliferam as danças do dragão e o vermelho e dourado invade os corredores e as lojas. No final do ramadão, celebra-se o Hari Raya, e nas zonas centrais montam-se as Kampungs, casas de madeira levantadas típicas da Malásia, e vendem-se doces típicos. Mas de todas estas celebrações, o Natal ganha na dimensão dos esforços e na grandiosidade do resultado. Árvores de Natal gigantes nas praças centrais, enfeites trabalhados ao detalhe a caírem de tectos imensos, renas gigantes decoradas com pedras preciosas. Vale a pena passear pelos centros comerciais, voltar a ser inocente, e acreditar, que o mundo possa ser assim, delicado e precioso. Talvez seja essa a razão porque o Natal atravessou culturas e vence no imaginário: porque nos transporta a um mundo mágico que só existe na fértil imaginação de uma infância intacta. Ou isso, ou porque é uma das mais eficientes propagandas de estímulo ao consumismo.
Eu continuo a transportar alegremente a criança que fui, de mão dada comigo ao longo da vida, independentemente de toda a inocência perdida pelo caminho. Nesta época do ano, ela anda incontrolável, uma vadia a cantarolar músicas que falam de neve e frio. E pela primeira vez em algum tempo, o meu corpo não grita a falta de verdade. Nada disto parece fora de lugar. Não só porque há alguma brisa lá fora, o céu está cinzento e, se estou dentro do centro comercial, está tanto frio que preciso mesmo de um casaco, mas porque dentro de uma semana estou de regresso ao frio da Guarda. O primeiro Natal no frio em quatro anos. Quando consigo agarrá-la, a criança que vive dentro de mim entusiasma-se a desencantar do fundo do armário o casaco de penas, as camisolas de lã, as saias de flanela e os collants. O adulto, que anda meio adormecido nesta quadra, escarna: dá-lhe duas semanas e já está a desejar as blusinhas de algodão e os vestidos de alças. Não sei não… o jantar de Natal não é o mesmo, vestida de calções e a transpirar em cima do perú.
Enfim, que bom que está cinzento e chove e há uma ligeira brisa à noite. Que bom que os bilhetes estão comprados e o frio não vai ser só este. Que bom que o regresso a Portugal desta vez seja acompanhado de luzes na rua e que o som das músicas natalícias e do apelo às reuniões familiares possa ser correspondido na íntegra este ano.