Nos dias que correm, o ultraje parece ser uma das maiores forças de motivação humana.
Não é a compreensão, ou a curiosidade intelectual, ou o amor, nem a empatia ou a biologia compartilhadas. A estas, a nossa reacção apresenta universalidade e intensidade variáveis. O ultraje, em contrapartida, parece ser uma força unificadora de efeito universalmente cataclísmico– pelo menos a julgar pelo que espaventamos nos meios sociais.
A história decorre assim: na televisão norueguesa, numa peça sobre a crise independentista da Catalunha e durante a intervenção de um comentador na TV2 Norge, usaram como pano de fundo um mapa em que a bandeira espanhola ocupava por completo a península Ibérica à excepção da Catalunha.
Foi um erro crasso, ridicularizado principalmente aqui na Noruega. Foi um erro que definiu a qualidade jornalística de quem o cometeu. Os noticiários da TV2 Norge não são, a priori, noticiários que se procurem avidamente em busca de informação validada – a TV2 é um canal privado que investe principalmente no futebol, desporto rei-e-senhor da sua emissão. Ou seja, pedir que a TV2 não cometa estes erros bárbaros é mais ou menos como pedir a um treinador de futebol que faça de Ministro dos Negócios Estrangeiros.
Passados minutos desta parvoíce ter aparecido na televisão, um político norueguês já estava a ridicularizar os autores no twitter. Ou seja, muito antes de isto chegar aos ouvidos de Portugal já estava a ser usado pelos noruegueses para reduzir quem cometeu o erro à sua insignificância intelectual.
Entretanto o meu Facebook iluminou-se em pirotecnia de mensagens públicas e privadas. Era um ultraje. Pediam-me comentários directos: “A Noruega acha que Portugal é Espanha! Vasco, que tens a dizer a isto?”, como se a estupidez humana – ilimitada como sabemos – fosse algo que eu pudesse comentar sem daí sair a fazer igual figura de parvo. Um dos meus amigos deu-se ao trabalho de pegar num mapa da Escandinávia e pintar a bandeira da Suécia sobre a Noruega. Outro – desta feita norueguês – deu-se ao trabalho de indicar as datas durante as quais a Noruega fora, efectivamente, território sueco (1814 – 1905). Aos portugueses, tentei apaziguar dizendo que os tipos da televisão eram “palhaços”. Aos noruegueses, explicadinho, expliquei que se lembrassem que há quase mil anos que os portugueses desfrutam daquilo que os catalães e bascos queriam ter mas não têm – independência. Entretanto, este “fait-divers” provocado por um anormal qualquer num canal de televisão menor, foi ocupando cada vez mais espaço mediático, até chegar às nossas televisões. Uma parvoíce momentânea, mostrada por segundos num canal de segunda e imediatamente ridicularizada localmente, estava a fazer ondas no meu querido país, e a cobrir séculos e séculos de empatia, apreciação mútua e muito bacalhau, com uma camadinha fininha de merda que dá pelo nome de despondência gratuita.
O ultraje tornou-se a força principal da nossa vida informativa. O “ópá, imagina que ouvi dizer que…” institucionalizou-se, validado pelos meios de informação que buscam emular – parece-me que sem razão – o efeito subjectivo e incontornável da interacção interpessoal. O efeito destruidor do ultraje, de que tanto se fala hoje em dia no contexto das “fake news”, reveste também de significância ad absurdum todas as insignificâncias dos erros menores, dando-lhes uma relevância que nunca teriam se o bom-senso prevalecesse.
A capacidade de obter reacção é, parece, muito mais relevante do que a objectividade dos factos. Uma notícia que deveria ter como mensagem “Erro de produção num telejornal norueguês é ridicularizado publicamente em todo o mundo”, passa a ler “Noruegueses pensam que Portugal é uma província espanhola”. A primeira afirmação é factual; posso confirmar pessoalmente que – tirando o parvo que pintou este mapa –nenhum norueguês pensa que Portugal é espanhol. Os noruegueses têm empatia e admiração pela nossa independência e identidade, e não escondem que acham os portugueses uma espécie de noruegueses da Península Ibérica –mais morenos, com melhor comida e mais sol, mas de mau-feitio e bonomia equivalentes. A segunda afirmação – a que explodiu nos meios sociais e que, consequentemente, chegou aos noticiários portugueses – é uma bombinha de ultraje destinada a provocar o reflexo do tapar de nariz decorrente de ansiedades estupidificadas. Deveria esgotar-se na sua insignificância, mas não esgota, porque o ultraje é um dos maiores motivadores de interacção humana – tem servido para conduzir a guerras e a justificar linchamentos, para criar fossos entre indivíduos e barreiras entre nações e sempre, sempre, sem razão verdadeiramente racional que justificasse os seus efeitos. Escrevo-vos isto sem esperança. Enfim, com um bocadinho de esperança. Espera… escrevo-vos isto a pensar “ópá, mas-vocês-estão-parvos-ou-quê?”, ou, no norueguês, “e dokke heilt dum eller?”
PS: Para quem queira espaventar o seu ultraje à TV2 Norge (enviar email ao Sr. Jarle Nakken, em info@tv2.no). Ahahahahahahahahaha!
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: 31 dias
Nas notícias por aqui: O banco Nordea está a despedir 6000 empregados por o banking ter evoluído para não precisar de bancários. (fonte)
Um número surpreendente: Hoje de manhã, quando fui correr com o meu cão, estavam 3 graus.