A vida de nómada vai-se enraizando e fazendo com que te tornes um nómada em ti mesmo. Obriga-te a ires mais ao fundo de ti, num activo processo de autoconhecimento e na busca da paz interior e exterior – de forma a quereres sempre procurar a felicidade. E nos processos, deixas de saber em que és bom, no que és mau, no que podes ser útil ou não, para que lado podes ir de forma a que toda a amálgama faça um mínimo sentido e, mesmo que continues aleatoriamente a insistir nas teclas pretas, talvez mesmo assim a melodia até dê para trautear em dias em que não imaginas que horas são ou mesmo em que estação do verão estás.
Hoje é um dia desses. Ontem também foi.
Talvez seja um caçador-recolector de coisas novas, talvez seja um caixeiro-viajante, um que venda sonhos de porta-a-porta, ou talvez seja alguém com algum distúrbio não estudado, não identificado e que precisa do novo para alentar o ego.. tal como um camelo vai precisando de viajar mais incontáveis quilómetros de oásis em oásis, quando poderia somente ficar logo no primeiro.
Até há pouco estava em Moçambique a descansar entre missões, num paraíso existencial, perto de quem queria estar, a viver na casa da Yara e do Zé – casa de artistas que inspira escritores a exaltar em estranhos aglomerados semânticos, obras que ficam para a eternidade, ou mesmo curtas metragens que em hemorrágica qualidade se transformam em filmes de vidas ricas em simplicidade. A Ilha de Moçambique é mágica, alada em paradigmas de eternos processos de desconstrução, repleta de pessoas que evoluíram mais que o tempo mas que ao mesmo tempo nunca precisaram de sair de si mesmas para serem um fruto em constante composição de culturas infindáveis e incontáveis. Decidi ir para a Ilha para ter tempo para pensar o que queria fazer da vida. Num total processo de ignorância etnocentrada, pensei em reforçar o meu papel na academia e terminar o meu mestrado, pensei escrever o meu primeiro livro, ou mesmo iniciar um projecto qualquer de desenvolvimento. Ao fim de 6 meses de Ilha, não só não mexi no mestrado, tal como quase nada escrevi, ou mesmo qualquer ideia minimamente interessante para futuros projectos apareceu. Quando analisei e somei tudo, entendi que tinha aprendido a fazer pão, misturar as farinhas de mandioca, milho, trigo ou mesmo sorgo. Aprendi a desmanchar atum, garoupa, xaréu ou mesmo o difícil peixe sapateiro. Reforcei o sentimento da minha relação com o tempo e entendi a importância de percorrer o chronos ao ritmo do desenho das estrelas do céu ou mesmo a importância do impacte do bailado melódico do chamamento para a reza nos lados da mesquita caiada a verde e branco.
Por um lado fiquei desiludido por não fazer o que tinha previsto, por todos os outros lados, descobri que trabalhar o peixe é uma arte de fabulosa precisão.. e saber fazer pão é dos actos mais religiosos que passei a conhecer. Fazer pão é a mais complexa reza e negociação com os deuses da paz interna e onde creio, residir uma das mais infalíveis soluções para a paz mundial.
Com todo este processo de paz interior quase homeostático que se reflectia no fluído do dia-a-dia, rápida e abruptamente a necessidade do caos regressou a mim e a constante necessidade de mudar para renovar o ciclo de aprendizagem embateu em mim com a força de uma Berliet Tramagal.
Tive uma urgente necessidade de mudar, ainda que o meu plano fosse, depois de Moçambique, ir à apanha da Azeitona com a minha família e depois talvez em Janeiro regressar ao mercado de trabalho.
Abri as páginas de empregos internacionais e incidi as minhas buscas para o Iraque, Afeganistão ou num, já há muito desejado, regresso à Síria.
Apareceram algumas posições interessantes, mas nada suficientemente desafiante.
Mas os sonhos e o caça dos sonhos recoletados chamava por mim cada vez com mais intensidade e por isso decidi estender a busca a desafios à Asia.
E depois de 6 anos seguidos de Áfricas – Angola, Congo “Democrático”, Serra Leoa e Moçambique, com climas tropicalizados pelas vivências e lutas por um desenvolvimento mais sustentável totalmente focalizado em saúde pública, foi o momento da ruptura com o conforto da mãe África e mudei de país, de continente, de temperaturas, de latitude, de língua, de alfabeto, de cultura, de projectos, de organização, de hábitos, de horários, de roupa, de calçado… Sei lá mais o que irá mudar…. Só estou certo que não mudarei os sonhos, a paixão, a luta pela felicidade, os ideais de liberdade, equidade e justiça, e a natural a humildade e a ambição.
Fui escolhido para assumir e Chefiar a Missão da Cáritas República Checa na Mongólia onde estou neste momento a gerir 2 escritórios, assegurar a qualidade e execução de diferentes projectos de gestão de resíduos industriais, construção e agricultura financiados por fundos da União Europeia.
Das eternas temperaturas entre os 20 e os 30… cheguei à Mongólia com -10 e esperam-me entre -40 a -45 entre Dezembro e Janeiro.
Ainda que tudo, todos os dias descubro coisas maravilhosas sobre a grandiosa Mongólia do Gengis Khan.. prometendo ir desvendando e partilhando nos próximos artigos.
A vida nómada voltou, a necessidade de percorrer as páginas das religiões não escritas voltou a percorrer as veias da eterna necessidade pela desconstrução de paradigmas.
E ainda que um dia o Professor Eduardo Lourenço me tenha dito que as minhas estórias eram luzes de Voltaire, continuarei aleatoriamente a insistir nas teclas pretas, talvez mesmo assim a melodia até dê para trautear em dias em que não imaginarei que horas são ou mesmo em que estação do inverno estarei.