“Como amo e detesto a Malásia!” É o desabafo da mãe sentada à minha esquerda, lançado mais para ela do que para qualquer uma de nós. Todas temos filhos a frequentar a Escola International e hoje estamos aqui para assistir a uma apresentação sobre a influência do ambiente na aprendizagem das crianças. A oradora, uma pedagoga especialista na transformação de espaços para os tornar mais condizentes ao bem estar e aprendizagem das crianças, toca no tema delicado da “natureza”. As crianças desenvolvem-se melhor em espaços exteriores, diz ela, com árvores para subir, lama para se sujarem, areia para sentirem debaixo dos pés, pedrinhas e conchas para agarrarem e criarem histórias, água para se molharem, insectos para – sejamos francos – torturarem. O contacto com a natureza e a exploração dinâmica do ambiente em redor, que obriga a correr, a sentir, a esticar, alcançar, gatinhar, deitar e inventar a brincadeira onde ela não está já pré-programada é indiscutivelmente benéfica para o desenvolvimento da criança.
O desabafo da mãe deu voz aos meus pensamentos. Como conseguir dar estas oportunidades às crianças na Malásia, onde vivemos em condomínios sem grandes espaços naturais em redor, onde a maior parte dos inúmeros espaços verdes que existem fora não são mantidos nem agradáveis e, nos casos em que o são, às dez da manhã já está um calor de fugir? Fazer da natureza uma amiga e aliada do desenvolvimento dos nossos filhos em Kuala Lumpur não é fácil. Por isso tantas vezes abdicamos do ambiente exterior e tratamos do desenvolvimento físico através dos inúmeros parques infantis interiores da Malásia. Neles, há imensa oportunidade para saltar, alcançar, cair, gatinhar, escorregar…. mas tudo embrulhado num ambiente ruidoso, com luz interior, de atmosfera mais ou menos saturada e onde a criatividade não é instigada – a criatividade já lá está, foi entregue a quem desenvolveu o espaço, a criança é meramente convidada a desfrutar. É bom, claro, mas em doses limitadas e com uma aspirina por perto.
É assim que me vejo mais uma vez a viajar para a floresta onde vivíamos em Woodend, Austrália, e onde tudo isto era tão fácil e natural. Mas, tal como a mãe do desabafo, também eu tenho o mesmo dilema no meu pensamento: porque se detesto, também amo a Malásia – Malásia essa que, para as duas, se limita a Kuala Lumpur. Acabo por fugir temporariamente àquela sala e ir sentar-me no espaço das minhas divagações a tentar perceber porque amamos ambas Kuala Lumpur. Como acabei de a conhecer, não sei se partilhamos a mesma leitura, mas obrigo-a a sentar-se ao meu lado enquanto figura que representa não apenas ela própria, mas as dezenas de mulheres expatriadas que aqui conheci.
Os nossos filhos entram na escola um pouco depois das oito da manhã. Algumas crianças chegam nos autocarros da escola e outras vêem de carro e os pais entregam-nas aos funcionários que estão presentes para as recolher e levar para as respectivas salas. Mas eu diria que a grande parte chega de mãos dadas com a mãe, que acompanha a criança até à sala e se despede dela aí. Há alguns pais, mas a maior parte são mães. Há alguns locais, mas a grande maioria são estrangeiras. Algumas das mães vêem com pressa, porque trabalham, têm de enfrentar o trânsito a seguir e, embora seja cedo, não menosprezem as horas de ponta em Kuala Lumpur! Mas… a grande maioria vem relaxada, com tempo para subir e descer as escadas com calma e vagar, para desespero das anteriores, que tentam engolir várias escadas de uma assentada e esbarram sempre na lentidão desses outros corpos. E não deixa de me fazer sorrir a grande quantidade de mães que vem trajada a rigor para a sessão de ginástica ou yoga ou Pilates que tem a seguir – uma clara indicação de como a manhã se vai passar e em sintonia com as faces reluzentes e os sorrisos abertos.
Nas famílias expatriadas, muitos são os casos em que a família se deslocou pelo trabalho do marido e a mulher não trabalha – eu lá estou incluída. Contas feitas, o salário e as regalias permitem que só um membro da família trabalhe, enquanto burocracias e questões de vistos contribuem para tornar difícil ao outro membro exercer qualquer profissão. O resultado é uma massa de mulheres profissionais, habituadas a vidas aceleradas e regradas pelas horas de trabalho, que de repente se vêm desocupadas. As respostas variam, a adaptação a esta situação nem sempre é fácil, mas mais uma vez há uma grande maioria que acaba por tirar máximo partido deste privilégio. Para muitas delas, como eu, esta situação é temporária; para outras, mesmo mudando de locais, saindo da Malásia e indo para a China, ou para a Índia, ou para as Filipinas ou onde quer que seja que a companhia do marido as leve, o modo de vida é o mesmo, preenchido com o transporte e acompanhamento dos filhos para escola e actividades pós-escolares; as aulas de ginástica e cafés e almoços com as amigas; os eventos de caridade; as compras, muitas compras; as viagens ao fim de semana e ao final do mês.
Toda esta vida, por sua vez, passa-se numa bolha. Uma espécie de realidade virtual onde é mais ou menos fácil construir o mundo ideal, expelindo da vista o que não o é. Kuala Lumpur é o local ideal para essa realidade virtual e suspeito que uma parte da declaração de amor à Malásia vem daqui. Conheci uma mãe que aqui chegou vinda da Índia: a quantidade de crianças a mendigar que tinham de observar quando se deslocavam de carro nas ruas tornava a bolha demasiado permeável ao exterior. Aqui a bolha é bastante impermeável, a vida pode ser feita sem este tipo de interferência na aprazível leveza dos dias, com uma cidade mais próxima de padrões europeus nos serviços, nos acessos, na qualidades dos espaços comerciais, mas com as mesmas vantagens de acesso a mão de obra barata que garantem uma vida na crista da onda- não a meio, não debaixo, mas no topo.
Eu sou uma dessas mães expatriadas, a viver nessa bolha. Quem me conhece, sabe que não me assenta. Passei estes meses a tentar furá-la, porque não há nada que faça mais o sangue correr com vontade nas minhas veias do que saber e participar do mundo tal como ele é. Consegui-o finalmente quando comecei há pouco a trabalhar como fisioterapeuta voluntária numa casa de convalescença para refugiados, a 45 minutos de Kuala Lumpur. Porque a realidade não-virtual apresenta geralmente o bom e o mau, a viagem inclui na paisagem famílias de macacos à beira da estrada: uma ternura… excepto aqui e ali quando estão literalmente mergulhados no lixo despejado à beira da estrada a comer algo que se parece demasiado com plástico. Inclui também a casa de convalescença em si, um lugar aprazível embora modesto, numa aldeia pequenina, onde os funcionários são também eles refugiados e reina a paz e a dedicação… mas onde um jovem de pouco mais de vinte anos ali é depositado após um acidente de bicicleta do qual resultou uma fractura aberta da Tíbia. Não tendo dinheiro para pagar ao hospital, ali chega com a sua fractura e provável traumatismo craniano, atordoado pela dor, a perna a inchar com os pequenos pedaços de osso que ninguém limpou, os bordes que ninguém uniu, a pele apenas toscamente cosida. Uma fractura da tíbia, coisa mínima na verdade, é questão de vida ou morte aqui, na periferia da bolha.
Nitidamente não são as mordomias da bolha que me fazem amar a Malásia. Nisto, eu e várias das mães que aqui encontrei não estamos totalmente de acordo. Mas o sentimento está relacionado com essa bolha. A Malásia é um período temporário nas nossas vidas, nunca foi uma aposta de longo termo, por isso não me atrapalha já tanto o que não gosto e, do que gosto, sei que tenho de estar pronta para dizer adeus: como essas maravilhosas mordomias de não precisar de limpar ou arrumar a casa e jantar fora tantas vezes quantas as que não me apeteça cozinhar. Pronto, está bem, concedo: alguma parte, provavelmente maior do que quero reconhecer, do meu amor à Malásia, é idêntica em mim e em todas estas mães. Mas há algo mais filosófico e menos óbvio que me faz olhar para trás e abençoar o momento em que resolvemos não assentar e voltar a viver noutro pais: a oportunidade de vestir outra pele e participar numa nova e diferente história. Neste caso, a de um expatriado no sudeste asiático.
Estarei para sempre agradecida pelas oportunidades que tive na vida de vestir e participar em histórias tão diferentes. Com elas, o meu mapa mundi é um palco a borbulhar de vozes, momentos, contextos, culturas e religiões, onde tudo é relativo, tudo pode ser vivido de formas diferentes. Podemos comer com as mãos, com faca e garfo ou garfo e colher; podemos viver na selva, sem grandes posses, ou num condomínio de luxo; podemos viver dedicado aos outros como um activista de direitos humanos na Colombia, ou metidos na numa bolha sem querer conhecer, saber ou compreender como vive o menos privilegiado que nós; podemos viver num país em guerra ou num país em paz; num país livre ou num país onde as vozes são silenciadas; num país onde a atenção médica é garantida, ou num país onde o Hospital nos pode fechar portas; num país onde a maioria pode chegar à Universidade ou num país onde a arrasadora maioria de crianças já está a trabalhar aos dez anos. Este é o mundo em que vivemos, este é o mosaico do qual é composto. Não creio que o consigamos compreender de todo se não sairmos nunca da nossa zona de conforto.
Mas voltando à sala onde falamos sobre a aprendizagem das crianças e a importância da brincadeira livre no exterior. Talvez o melhor seja que, quando deixemos para trás a Malásia, voltemos a uma floresta, onde tudo isto seja garantido. Esta será sempre a parte mais difícil da nossa vida aqui, mas é um período: o mesmo período em que houve acesso a uma escola internacional de reputação mundial, em que as crianças começaram a aprender mandarim, em que foram amigos de rostos que refletem a maravilhosa variedade deste mundo, em que se habituaram a sotaques, hábitos e comidas diferentes. O mesmo período em que, quando dizemos que talvez regressemos à Austrália um deles responde com horror: “Não, mãe, vamos para o Dubai ver a torre do Califa: estamos a descobrir o mundo!” Posto isto, a natureza talvez possa esperar um pouco.