Pode dizer-se que vivo em pelo menos três mundos diferentes e, neste mês de Janeiro, esses três mundos misturaram-se todos. Os meus pais, acompanhados dos meus primos, voaram até Kuala Lumpur para me ajudarem a soprar velas e ficar connosco durante 20 dias, criando uma maravilhosa inundação de Portugal no espaço da nossa vida em KL. Quando eles saíram, parti para Melbourne, onde fiquei durante uma semana em casa da minha cunhada, profunda e orgulhosamente Australiana, num bairro calmo e afluente a poucos quilómetros do centro. Hoje regressei à Malásia, aos edifícios gigantes e ruídos constantes, ao calor tropical e às rotinas do dia a dia.
Com toda esta encruzilhada a pulsar ideias e contrastes na minha cabeça, podia falar de imensa coisa e não queria necessariamente falar do que aqui vai, mas os meus dedos correram à frente das minhas escolhas e, quando dei por ela, já estava tudo escrito. A verdade é que não consigo evitar, quando reflicto sobre os meus mundo no mundo, que as notícias do Trumpmenistão, cada vez mais absurdas e perturbantes, se arrastem para dentro das minhas avaliações, me apertem o estômago e acabem por acrescentar traços trágicos onde eu apenas desejo ver paisagens bucólicas. Quero um Degas do tempo das bailarinas jovens, de saias brancas e laços de seda rosa nas sapatilhas de ponta – a escolher, preferia não saber a história dessas bailarinas nem ter na minha tela a tristeza de um Degas semi-cego, onde o mundo é cada vez mais baço e escuro. Mas a alienação, a decisão de não querer saber, é uma das razões que nos trouxe até este momento da história, pelo que não vale a pena fugir do que nos vai perseguir.
O Trumpmenistão veio-me à cabeça quando percebi como a Malásia pode ser interpretada por quem vem da Europa. Como sabem, ou mea culpa se ainda não mencionei, a Malásia é maioritariamente muçulmana. Como tal, as mulheres usam o véu que lhes cobre o cabelo, orelhas e garganta, mas não a face – o khimar – e não usam roupas que mostrem demasiado o corpo. É uma forma de vestir que denota devoção à religião – como uma cruz no peito o faz – e prende-se com uma necessidade de vestir de forma modesta, recatada. O uso do véu fez e faz parte de religiões como a cristã e a judaica, embora o seu uso não seja já tão difundido – mas foi-o no passado, repare-se nas imagens da Virgem Maria. O seu uso está longe de ser um drama para quem o usa ou motivo de compaixão. Na Malásia, o seu uso é facultativo, só o usa a mulher que sente o “chamamento”, ou a fé, e o/a procura demonstrar. O uso de um khimar não está associado à repressão ou ao abuso mas a uma escolha religiosa, tão penosa e possivelmente difícil de entender para quem vê de fora, como para muitos de nós a abstinência sexual antes do casamento – e mais não digo. Ok, está calor, que horror, deveriam usar menos roupa. Mas a decisão é delas. Se a minha avó quer usar roupa preta desde que o meu avó morreu deixá-la usar – para quê insistir que ela vista verde florescente que está na moda este ano e lhe assenta mesmo bem com o prateado do cabelo?
O véu é a forma como estas mulheres publicamente testemunham a sua religião, ponto final. Assim sendo, porque me há-de afectar tanto que uma mulher o use? Ela está sentada ao meu lado no posto de correios e eu decidi usar um vestido que mostra as pernas até bem acima do joelho e um decote que na minha cultura já é considerado arrojado – ela não se importa, não lhe faz confusão, não abana a cabeça ou derrama comentários e risos em cima das amigas… porque é que eu o hei-de fazer? A tolerância, a palavra tão bonita que toda a gente diz que tem em casa à disposição – logo à entrada na segunda gaveta, tenho a certeza porque a uso todos os dias – não significa tolerar aquele que é igualzinho a mim, mas aquele que é diferente: no pensamento, nas roupas, na cor, na fala. Eu não fui virgem para o casamento (e quem tem dúvidas saiba que não me casei e tenho dois filhos) mas se alguém quiser ir, por favor, faça o que bem entenda que a mim mais não me cabe do que respeitar as suas escolhas, que são parte da sua vida privada e das suas crenças. Saiba, contudo, que espero de si o mesmo tratamento.
A Malásia é um país onde o teste à tolerância e respeito pelo diferente foi superado com nota máxima. O país teve de negociar desde cedo com três culturas tão diferentes como a Malaica, Indiana e Chinesa. Houve um confronto étnico marcado a sangue logo após a independência, o 13 de Maio de 1969. A partir daí nada, a não ser uma aprendizagem de convivência e respeito; uma clara noção que o tecido social deste país assenta nestes diferentes tipos de fibras e ganha a partir deles uma invejável riqueza. Esta harmonia única na diferença, na minha opinião, é aquilo que antes de mais deve ser apreciado neste país. Espero que a minha família tenha levado com eles não apenas impressões sobre a magnificência das Torres Petronas, os resíduos da história portuguesa em Melaka, as cores das Batu Caves, o manjar de marisco em Kuala Selangor, o tamanho dos buracos no chão ou a impressão, colada ao rabo, dos solavancos na estrada – cortesia da lombas de meio metro à chegada ao condomínio – mas que tenham levado também algum assombro por esta pequena bolha de harmonia. Mais: que se orgulhem, como eu, de que para os netos a variedade humana é um dado adquirido e não algo para estranhar ou temer; que para eles, mulheres de véu e chinesas de mini-saia, meninos de cabelo louro e pele branca, meninos de cabelo crespo e pele escura, japonesinhas de olhos cerrados, não são ideias, mas pessoas com nome: a miss Jeni, a Jin, o Gary, o Sufiah, a Demi. Com todos brinco e com todos me chateio e reconcilio outra vez, e em todos não mais vejo do que uma senhora, um menino ou uma menina. Um Degas na fresca juventude, uma eterna bailarina no quadro da nossa infância, tão longe de conseguir fazer algum sentido das baboseiras racistas, por vezes inconscientes, que fecham as portas que se abriam e erguem os muros que pensámos derrubar.
Com estes pensamentos na mala desloquei-me a Melbourne, onde o mundo é já ligeiramente diferente, ainda que em muitos aspectos exemplar. À chegada, perto das passadeiras do aeroporto, no terminal de chegadas internacional, existe um enorme placard onde se desenhou um hino à multiculturalidade de Victoria, o estado que tem Melbourne como capital. Nele, abraçam-se africanos e indianos, aborígenes, chineses e caucasianos, mulheres com e sem véu, homens de negócios e turistas de pé descalço. É a Melbourne que me cativou, aquela que encara com vergonha o passado genocída do país e o prova ao abraçar e integrar culturas de todo o mundo, criando através delas uma nova identidade. Em contraste com este painel de boas-vindas, contudo, está a lentidão com que saímos do aeroporto, com que as malas são revistadas e a segurança apertada, com que nem todos recebemos o mesmo tratamento, como o painel parece indicar. Algo se aperta em mim. Entro numa cidade que me parece ter de gritar o hino da multiculturalidade, para enfatizar a sua razão, porque tem receio que se possa dar crédito às vozes baixinhas que cantam outra música.
Talvez seja a minha visão, marcada por demasiada interferência do Trumpmenistão no meu dia a dia, mas pressinto que tudo pode mudar na Austrália, que nada está assumido, que aquele painel não significa mais do que uma ténue imagem do presente. Lembro-me de ser adolescente e inocentemente ver os EUA como vejo agora a Austrália, um símbolo de integração e de multiculturalidade.
A Austrália, já o disse antes, é a sociedade do bem estar onde ainda existe uma. Os salários são altos, a economia não sofreu as crises financeiras recentes, a educação é invejável, a segurança social funciona, os cuidados de saúde estão assegurados. Mas nem tudo cresce e floresce neste começo de século. Há fissuras na sociedade, há incógnitas na economia. E a grande incógnita, aos meus olhos, é como lidará esta sociedade com uma perda desta qualidade de vida. Que berros se ouvirão, que multidão de frases baixinhas de repente se levantarão, quem será o bode expiatório que as elites vão encontrar e que as massas vão perseguir?
Ouço as notícias enquanto conduzo por entre os idílicos bairros da cidade, povoados por pequenas casas com jardim onde o jornal da manhã já foi entregue e jaz à entrada, envolto em plástico, à espera dos habitantes; passeios impecáveis, separados da estrada por árvores e verde; casas com trinco aberto; um parque à espreita a cada esquina, com baloiços e escorregas que nunca se vêem estragados; gente que faz os 10 kilómetros até ao trabalho de bicicleta, na área da estrada a isso destinada. Os pássaros cantam e enche-me de paz o cheiro a eucalipto e jasmim. Nas notícias, debate-se o telefonema entre Donald Trump e o presidente da Austrália, Malcolm Turnbull. Trump acaba de lhe desligar o telefone na cara após afirmar, com a diplomacia que já se lhe conhece, que o acordo sobre refugiados assinado pelos dois países no tempo da administração Obama é idiota e ele vai ter de estudá-lo. Em causa estão 1250 refugiados – que Trump se apressa a re-baptizar como imigrantes ilegais – que iriam finalmente encontrar abrigo nos EUA depois de uma espera agonizante nos centros de detenção off shore da Austrália (com condições tão desumanas que há quem tenha preferido imolar-se pelo fogo a continuar neles vivo). Sucedem-se as chamadas de pessoas interessadas em dar a sua opinião sobre o tema. São várias as opiniões, mas entre insultos a Trump e mais confusão entre imigrantes e refugiados, o que mais está em causa aqui, é que neste pais imenso, que berra alto a sua multiculturalidade, não há espaço para aceitar estes 1250 refugiados, independentemente destes verem ou não a sua entrada vetada no Trumpmenistão. E essas vozes, que não falam de multiculturalidade mas doutras coisas, falam, deixam-se ouvir, e sabemos que estão lá. Desligo o rádio, mas mesmo assim, já deixei de conseguir ouvir o canto dos pássaros. Passa-se algo de muito estranho neste mundo..
As palavras do título, mais ou menos assim ditas, são da autoria de Cruzeiro Seixas, que as citou na entrevista realizada por Bernardo Mendonça a 3 de Fevereiro de 2017, como parte do programa “A Beleza das Pequenas Coisas”. Roubei-as porque, na sua simplicidade, descrevem de forma tristemente bela a incógnita do mundo em que vivemos.