Trump cumpre o que disse durante a campanha e manda mesmo construir o muro (ou as partes que faltam) na fronteira com o México. Na sexta feira dia 27 de janeiro, o Presidente dos EUA ordena o fecho das fronteiras a cidadãos de sete países de maioria muçulmana e suspende durante um período de quatro meses o Programa de Admissão de Refugiados. Em reação à ordem executiva assinada por Trump, no dia seguinte, Justin Trudeau, o primeiro-ministro canadiano, escreveu o seguinte tweet “To those fleeing persecution, terror & war, Canadians will welcome you, regardless of your faith. Diversity is our strength #WelcomeToCanada”, seguindo-se depois uma fotografia de 2015 onde se vê Trudeau a dar as boas-vindas a uma criança refugiada da Síria. No domingo, na cidade do Quebec, hélas! Alexandre Bissonnette, 27 anos, entra armado no Centro Cultural Islâmico da capital da província do Quebec e mata seis muçulmanos que se preparam para as orações da noite. Embora os ataques islamofóbicos tenham aumentado nos últimos anos no Canadá, o país foi apanhado de surpresa. Nas redes sociais multiplicam-se desde então mensagens de apoio às comunidades muçulmanas e relembram-se os valores canadianos entre os quais a tolerância, o multiculturalismo e a conciliação da identidade secular da província e do país com as várias crenças e manifestações religiosas que acolhe.
Fez-me pensar na comunidade portuguesa em Montreal. Nos anos 50 foi assinado um acordo bilateral para recrutamento de mão-de-obra e centenas de homens e mulheres vindos de Portugal continental, dos Açores e da Madeira deixaram a pobreza, o desemprego, o serviço militar e a guerra colonial para trás e instalaram-se em Montreal. A comunidade portuguesa, com cerca de 50 mil habitantes, é uma das muitas que integra o patchwork montrealense. É conhecida pelo frango no churrasco, pelos pastéis de nata, pelo fado, mas sobretudo pelas festas e procissões religiosas. Nas festas religiosas mais populares como o Senhor Santo Cristo dos Milagres, o Espírito Santo e a Nossa Senhora do Monte, as ruas à volta da Missão de Santa Cruz em Montreal são fechadas. A expressão da religião ou a vivência dos costumes da comunidade nunca foram um problema ou uma ameaça para a cidade e outras comunidades.
Para quem está longe da realidade da emigração, talvez não seja fácil de perceber a necessidade de quem vive expatriado em se juntar com outros do seu país, seja para rezar, para ver futebol ou comer. Os clichés sobre os jantares de bacalhau, as festas de música popular, o português humilde, trabalhador e subserviente abundam, muitas vezes reforçados pelo cinema, pelas notícias e pelo julgamento que se faz às cegas de determinadas práticas socioculturais das comunidades emigrantes. Mas quando se mudam os óculos e o preconceito (ou o muro) é substituído pela abertura de espírito, percebemos como é que mais do que uma questão de adaptação, a necessidade que o ser humano tem de partilhar com outros que falam a mesma língua, que têm as mesmas raízes, os mesmos costumes, a mesma gastronomia ou a mesma religião – como no caso dos seis homens mortos a tiro na sua mesquita na cidade do Quebec, a reunião é uma questão de sobrevivência.
É por isso que os centros islâmicos, as grandes sinagogas, as missões católicas, as associações culturais, entre outros nos países de acolhimento, são o símbolo de comunidades com uma História em comum. Estes espaços têm muitas vezes como principal missão combater o isolamento social e encontrar estratégias para lidar com o desenraizamento cultural. É a missão também da Santa Cruz no bairro Plateau Mount-Royal fundada nos anos 60 e que continua, mais de 60 anos depois, a ser o coração da comunidade portuguesa e luso-descendente. Além do serviço religioso, a Missão adaptou-se à realidade da sua população maioritariamente envelhecida e criou a Universidade dos Tempos Livres. Um caso único e de sucesso na diáspora portuguesa, oferece um conjunto de atividades que vão desde cursos de língua a cursos de azulejaria, bordado, cozinha, boas maneiras, entre outros. De todos os projetos, talvez o meu preferido seja o “Vamos comer juntos”. Uma ideia das muitas do imparável Padre José Maria Cardoso (e que um dia vai ter uma crónica dedicada ao seu trabalho e dedicação), a fórmula é simples mas eficaz: juntar pessoas – a grande maioria com mais de 65 anos, à volta de uma mesa. Com início marcado às 12h, ao fim das duas ou três horas, cerca de uma centena de emigrantes portugueses saem de lá com a barriga e com o coração cheio. Naquelas horas mágicas, esquece-se a solidão dos outros meios-dias, estreitam-se os laços, dança-se, joga-se ao bingo e, mais importante, fala-se e é-se ouvido em português.
A primeira vez que fui a um almoço no salão da Missão de Santa Cruz foi em 2013 quando realizei um documentário sobre os 60 anos da comunidade portuguesa em Montreal. A 13 de Maio de 1953, o primeiro contingente de trabalhadores desembarcou do navio Saturnia no cais 21 do porto de Halifax, província da Nova Escócia. Firmino Ramos, um desses pioneiros da emigração portuguesa no Canadá, foi a primeira pessoa que entrevistei para o documentário.
Na altura, lembro-me de estarmos sentados na mesa da cozinha e de lhe perguntar como é que ocupava os dias. O senhor Firmino olhou para mim, molhou o pão no leite, encolheu os ombros e com uma expressão triste disse “sabe como é, ando para aqui, encontro-me com este e com aquele e assim se passam os dias”. Contou-me depois que a única filha vivia na América e que estava muito bem. “Tem para lá um casarão!”. Acrescentou que se sentia muito sozinho desde a morte da mulher há uns anos. “Mulheres há muitas, mas eu queria era a minha”, fez um sorriso triste. “O único defeito é que não gostava muito de dançar”. Continuámos à conversa e depois levantou-se de repente, arranjou o cabelo e despachou-me dizendo que não se podia atrasar. “Hoje é dia de baile!”, arranjou o cabelo com as mãos. Era quarta-feira, dia do almoço semanal na Missão. “Se falto (ao almoço) ainda acham que morri!”.
Na semana seguinte lá fomos para as filmagens. “Então quer-me ver a dançar, essa é boa”, sorriu. A sala estava cheia, como está quase sempre.
Voltei à Missão de Santa Cruz este dezembro para o almoço de Natal. Reconheci muitas das caras que vi há três anos. “Ganhamos muito quando vimos aqui. Somos todas benévolas (do francês bénévole para voluntário), motiva-nos o trabalho e fazer bem a esta gente…” disse Olga Raposo quando lhe dei os parabéns por continuar a orientar o grupo de oito voluntários. O mesmo grupo que semana após semana, ano após ano, se dedica a arranjar a sala, a pôr as mesas, a cozinhar e a limpar tudo. “Se não gostássemos muito não vínhamos”, acrescentou.
Há uns meses li um estudo que concluía que o primeiro passo para reduzir a violência e o bullying nas escolas era jantar em família. E quem o faz regularmente sabe como é que se descobrem as coisas mais surpreendentes quando se ouve e se fala com respeito a uma criança à mesa. Não é novidade que é na escuta e na partilha que se reforça a cumplicidade entre pessoas e se desenvolve o sentimento de pertença e união dentro de uma família ou de um grupo. Talvez por isso é que iniciativas como o “Vamos comer juntos” são fundamentais hoje e sempre, e sobretudo em comunidades emigrantes. Basta ir lá para ver e ouvir o que dizem as pessoas que semanalmente participam na iniciativa. “Haja uma tempestade de neve (o que acontece não raras vezes por aqui…) ou faça sol, faço questão de vir sempre almoçar” disse-me uma senhora. “Este é o melhor momento da minha semana!”. Se não me tivesse dito que era quase totalmente cega não me teria apercebido. “Só não sei o que vai ser disto se algum dia o Padre Zé Maria se for embora…”, disse com tristeza.
O Padre José Maria Cardoso, o animador de serviço, cantou o “Jingle Bells” e anunciou os bolos reis. Seguiu-se depois o bingo e, mais tarde, a música popular portuguesa.
Antes de sair fui-me despedir do senhor Firmino. Já perto dos noventa anos, está mais esquecido do que da última vez que falei com ele, mas o corpo continua “cá para as curvas”, e fez um passo de dança. Virou-me as costas e foi, urgente, abrir a pista, como se cada passo o levasse mais para perto de casa, lá em Pardilhó, em Estarreja, no norte de Portugal.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: 150
Nas notícias por aqui: Na sequência do atentado da semana passada continua a discutir-se a integração das minorias religiosas na província.
Sabia que por cá: a Universidade dos Tempos Livres da Missão de Santa Cruz oferece oficinas de pintura, de cozinha, de bordados, de língua, de azulejos, concursos de talentos, desfiles de moda, etc.
Um número surpreendente: cerca de 80 a 120 pessoas almoçam todas as quartas-feiras no salão da Missão de Santa Cruz.