O calor tropical deu-nos tréguas este mês. A chuva foi aparecendo frequentemente, tingindo de cinzento escuro profundo um céu timidamente azulado e, sem pedir licença, fazendo-se vomitar ruidosamente, com espectaculares rajadas de vento a acompanhá-la. Um show de pequena duração, inofensivo, mas sem deixar dúvidas quanto ao seu brutal poder oculto. Porque não deixam dúvidas quanto ao que podem fazer, se quiserem e lhes apetecer, as trovoadas tropicais enchem-nos de humildade. Insinuam, com argumentos irrebatíveis, o quanto não dominamos o que julgamos dominar.
Presenciei tempestades tropicais na selva colombiana, abrigada em pequenas cabanas de madeira com telhado de zinco que amplificavam o impacto sonoro de cada gota de água. Senti-as no Sri Lanka, numa pequena aldeia piscatória do Leste, a transformarem em pouco tempo o duro solo de terra vermelha num imenso lamaçal. Em ambos casos, adorava sair ao pátio da casa e deixar a feroz descarga de água escorrer-me pelo corpo. Éramos sempre vários a viver na mesma casa, e vários os que corriam para a rua no mesmo ritual. Lembrei-me disto porque um amigo me comentava hoje a dificuldade em entender o apelo inegável destas tempestades. Creio que a resposta reside, em parte, na sensação de fazer parte de algo maior que nós. O ruído ensurdecedor, que apaga tudo o resto; a descarga de água imensa que, ao tornar tudo cinzento e opaco, apaga a paisagem em redor. O que resta somos nós e a sensação de estarmos vivos. Uma meditação forçada, a experiência religiosa sem Deus a quem rezar, que o contacto com a natureza mais pura nos consegue trazer.
Quando a mão do homem é difícil de apagar, contudo, a experiência não é tão avassaladora. Assistir a estas tempestades em Kuala Lumpur não tem o mesmo impacto. Aqui, a modernização ainda passa pelo atropelamento total da natureza. Há alguns parques, é certo, mas a maior parte encolhe-se perante o sol abrasador; o chão abre fissuras que não são remediadas; os parques infantis (de resto à semelhança do que acontece muito em Portugal) têm um grande investimento inicial mas depois raras vezes são mantidos: ganham ferrugem, o plástico parte, a madeira cede, e ficam como testamento às boas intenções, enquanto as ervas crescem por eles adentro. O pensamento geral parece ser que, de qualquer modo, eles não são necessários. Dentro dos centros comerciais, existem enormes parques infantis, o sonho de qualquer criança. É difícil competir com a natureza quando o calor é mais que muito e a humidade cola a roupa ao corpo mas dentro do centro comercial a temperatura é agradável e há escorregas coloridos de três andares, salas repletas de trampolins, paredes de escalada, museus de ciência, ateliês de artesanato e por aí adiante.
Assistir, pois, à tempestade dentro de um prédio enorme, que não abana e não multiplica o som da descarga, não lhe dá a mesma dimensão. Por outro lado, ir a correr para a rua e mergulhar na chuva é tarefa mais complicada do que se pode pensar. Kuala Lumpur é uma cidade onde o prestígio é encarado em altura. A piada do fascínio masculino com a reprodução de pénis erectos é muito apetecível neste contexto. As grandes cidades do sudeste asiático escreveram em altura o boom económico dos finais do século passado e entraram no novo milénio a competir em números de andares. Não sei do resto, mas Kuala Lumpur vive a olhar para o céu. Os prédios são cada vez mais altos, modernos, luxuosos. Cá em baixo, os passeios quase não existem e, onde existem, há buracos que causam autênticas emergências médicas. Mas pouco interessa, porque quase ninguém anda a pé. Ora, nós, família expatriada com boas condições, vivemos num desses prédios, no 9º andar – o que equivale quase a viver no rés do chão. Ainda assim, ir a correr para a rua com o intuito de ficar encharcada de trovoada, é logisticamente quase impossível. O espaço exterior do condomínio não é muito, quase todo ocupado pela piscina, que de resto não se pode utilizar quando está a chover. Mas ainda que me fosse plantar no pouco espaço a descoberto e que os guardas achassem normal tal exercício de comunhão, não me deixariam sob nenhum pretexto regressar dentro do edifício a pingar água pelo chão impecavelmente mantido.
O contacto com a natureza é limitado e a sustentabilidade da cidade reduzida. Estes são os dois apontamentos negativos da infância da nossa experiência na Malásia – que conta apenas com quatro meses. Já falei do “haze” numa crónica passada, a névoa que resulta da destruição pelo fogo das florestas tropicais da Indonésia e que torna o ar temporariamente irrespirável. Tivemos sorte este ano e não assistimos à dimensão assustadora que esse fenómeno pode ter. Mas para além do “haze”, há vários aspectos de Kuala Lumpur que me remetem para a desgastada mas sempre actual analogia do Titanic – a convicção de que o domínio da tecnologia nos torna senhores do mundo, quando afinal a viagem que fazemos acaba por ser curta e a arrogância nos vem bater à porta com retoques de ironia. Em Kuala Lumpur, a insustentabilidade grita a cada esquina. A cidade inteira parece-me por vezes um imenso monumento à efemeridade.
A manutenção destes edifícios enormes, estas torres que se continuam a multiplicar, é complicada. Os elevadores, as centenas de apartamentos por edifício, os milhares de pessoas, carros, o clima abrasador, as tempestades… Ao contrário das casas, os grandes prédios parecem ter uma juventude glamorosa mas curta, tal qual estrelas de cinema dedicadas a excessos. Os condomínios que fui visitar, com cerca de quinze anos de idade apenas, vinte no máximo, denotavam um desgaste confrangedor – a tal estrela de cinema, retocada a silicone ou de brilho baço nos olhos, a interpretar a/o jovem que já não é. O nosso prédio cheira a novo, ainda está na flor da idade. Mas o fantasma de um envelhecimento prematuro paira-lhe no ar, ou parece-me a mim que sim.
Provavelmente, se a cidade de Kuala Lumpur fosse desenhada de forma a ser genuinamente sustentável, não haveria nada do que ela é neste momento que se mantivesse. Os prédios altos, com a densidade populacional que originam, o desbravar da natureza que torna as temperaturas tão mais insuportáveis, a falta de passeios, as estradas desenhadas como auto-estradas dentro da cidade, que obrigam a desvios, sentidos únicos, quilómetros inúteis… Kuala Lumpur, exemplo entre tantos, não integrou o contexto ambiental nas decisões de crescimento. A insustentabilidade destes prédios talvez seja menor noutros climas. A falta de espaços verdes talvez tenha menos impacto noutros locais onde o calor não seja tão omnipresente. Aqui, são erros tremendos.
Para terminar com requintes mórbidos, e porque se falou no Titanic, vale a pena referir o equivalente em versão térrea. Há dias uma faladora conduta de Uber apontou-me para uns prédios localizados numa colina privilegiada da periferia de Kuala Lumpur, as Highland Towers. A colina onde estão localizados permite uma das melhores vistas da cidade, com as torres Petronas e a torre Menara em perfeito enquadramento. A construção das Highland Towers acabou nos anos 80, e eram à data dos melhores edifícios da cidade. Filhos de Ministros compraram apartamentos, tudo esgotado em pouco tempo, fortunas gastas. O local da construção, embora privilegiado nas vistas, era atrapalhado por um pequeno riacho. Construiu-se, com sucesso, um sistema de escoamento de água e os planos de construção foram avante. Anos depois, um outro empreendimento vizinho deparou-se com o mesmo problema. As águas do segundo riacho foram juntar-se às outras, no mesmo sistema de escoamento, que não estava obviamente preparado para tanto fluxo. A erosão do solo foi-se dando lenta mas seguramente. Um Domingo de manhã, quando a maior parte dos seus habitantes estava em casa, uma das torres começou a tremer. O solo manifestava finalmente a erosão e cedia perante o peso do edifício. A torre tremeu, mexeu-se e, com quem estava lá dentro, cedeu à gravidade e caiu, desfez-se em entulho. Nesse mesmo dia, os habitantes das outras torres pegaram nos seus haveres e saíram. Era o dia 11 de Dezembro de 1993. As restantes torres nunca caíram. Lá estão, vazias e, diz a lenda urbana, ocupadas pelos fantasmas dos corpos que nunca foram recuperados e ficaram para sempre enterrados em escombros. Há quem tenha comprado drones só para os fazer entrar pelas janelas das torres assombradas, e fazê-los viajar dentro das entranhas dos edifícios. Não encontraram fantasmas, mas muita evidência de que a natureza reclamou o espaço de novo para si, enchendo-a de verde e silêncio.
Olhar o céu em Kuala Lumpur
KUALA LUMPUR, MALÁSIA - Kuala Lumpur é uma cidade onde o prestígio é encarado em altura. A piada do fascínio masculino com a reprodução de pénis erectos é muito apetecível neste contexto