Há quase quatro anos que vivemos na rua Hutchison. Mudámo-nos no início do verão. O sol estava quente e a grande árvore à frente das janelas da fachada principal do apartamento estava carregada de pequenas flores brancas. Nesse mesmo dia o vizinho de cima ofereceu-nos as duas maiores postas de salmão fumado que alguma vez vi. No saco de papel vieram ainda três frascos de patês à base de salmão fumado, um outro de ovas de salmão e uma truta fumada. Todas as embalagens tinham bem visíveis um grande autocolante onde se lia kosher. No kit de boas vindas veio ainda um saco com um sortido de chocolates e chupa-chupas em forma de Smile para os nossos dois filhos. Na altura a Maria do Carmo tinha quase dois anos e o Tomás três meses. Agradecemos com um תודה רבה “Toda rabah”, muito obrigado em hebraico a que ele reagiu com um sorriso educado.
Durante as mudanças a vizinha do prédio ao lado observou-me da entrada de casa dela enquanto eu descarregava as coisas do carro. Depois veio ter comigo. Usava uma camisa preta de mangas compridas de algodão, uma saia travada pelo joelho preta ou cinzenta escura, meias baças cor de pele e umas sabrinas pretas. Tinha um colar de pérolas e o ar pesado dado pela roupa contradizia com o corpo esguio e a cara jovem miudinha. Lembro-me de pensar que seria mais nova do que eu. O lenço que lhe cobria a cabeça (o cabelo foi rapado no dia em que se casou) estava tão bem posto e apertado que agarrava um telemóvel à orelha direita, deixando-lhe as braços livres para segurar ao colo o filho de meses.
– São judeus? Perguntou-me num inglês americano.
– Não…
– Mas sabem que este é um bairro judeu?
– Sim, respondi-lhe. Somos portugueses, como os proprietários do prédio.
– Quantos filhos tens? Perguntou-me a olhar para uns brinquedos que estava a tirar do porta-bagagens.
– Dois. Uma rapariga e um bebé, rapaz.
– Eu tenho cinco! No rosto muito branco fez-se um sorriso de vencedora no concurso da maternidade. Apontou com os olhos para as crianças, todas vestidas de igual e de cores sóbrias, que brincavam no passeio e despediu-se.
A rua Hutchison em Montreal é o coração da comunidade hassídica, um ramo do judaísmo entre o ortodoxo e o ultraortodoxo. A rua Hutchison também é a rua que divide o bairro Outremont do Mile-End. Outremont é o bairro francófono le plus huppé (o mais privilegiado) da cidade. Os seus parques bem cuidados enchem-se de abril a outubro com crianças, pais e baby-sitters filipinas; as ruas são corredores verdes de carvalhos silvestres e freixos; há boas escolas, casas com grandes janelas e jardins impecavelmente ornamentados com as flores da época. O Mile-End é o bairro mais criativo da cidade. Uma antiga zona industrial ocupada nos últimos anos por produtoras de cinema e televisão, espaços de coworking, ateliers e pequenos negócios alternativos. É onde vive o maior número de artistas e escritores por metro quadrado, onde se concentram o maior número de livrarias independentes, lojas de roupa em segunda mão e decoração vintage, supermercados biológicos, cafés vegetarianos que promovem novos talentos e restaurantes da moda. A presença da Ubisoft Montreal, um dos maiores estúdios de desenvolvimento de videojogos do mundo com 2.700 empregados também contribui para a vitalidade e jovialidade desta parte da cidade.
Vivemos num primeiro andar de um prédio com a fachada de tijolo à mostra e as escadas na fachada principal, típico em vários bairros de Montreal. Os antigos corrimãos de ferro forjado e os caixilhos de madeira foram substituídos por plástico branco antes de nos mudarmos, com pena nossa que somos só arrendatários. No rés-do-chão vivem a Dona Maria e o Senhor António, os proprietários, dois madeirenses emigrados há mais de cinquenta anos. Os três filhos já saíram de casa e vivem nos subúrbios em casas grandes com terrenos. Sei que estão a guardar as netas quando as cortinas de rendas da sala da televisão estão abertas e se percebem as silhuetas das duas meninas sentadas no sofá. “Por elas ficam o dia todo de pijama”, disse-me a Dona Maria uma vez quando vieram à porta depois do almoço com o pijama coberto de pequenas Hello Kitties. No andar de cima vive a família Sternlicht: o pai, a mãe e seis filhos de idades próximas. As portas das nossas casas são lado a lado, sendo que a deles tem mais um lanço de escadas interior. Nas primeiras semanas as duas filhas mais novas costumavam estar sentadas à porta de casa como se passassem o dia todo à espera de alguém. Percebi ao final de alguns dias na casa nova de que éramos nós o alvo da sua curiosidade. A Carmo – que fazia questão em subir os quinze degraus sozinha para chegar primeiro, sentava-se ao lado delas. Ficavam as três ali soltando uns sorrisos envergonhados num diálogo silencioso mas cúmplice de crianças. Em poucos meses e ao mesmo tempo em que aprendia português e francês aprendeu umas palavras soltas em iídiche. O vizinho entretanto teve coragem de nos corrigir e dizer que eles falavam iídiche e não hebraico. A primeira frase completa na língua da Romi e da Suzi que a Carmo disse (num tom fiel ao original) foi aproximadamente “ikh bin gegangen” que em tradução livre quer dizer “eu vou para casa”. A desencriptação ficou a cargo do meu marido que, por falar alemão, percebe muito do que os vizinhos dizem. Durante alguns meses a Carmo fez muitas birras porque insistia em usar vestidos até aos pés e com mangas compridas e collants de vidro como a Romi.
Uma das características desta comunidade é a forma festiva como celebram Deus todas as sextas-feiras à noite. Nos primeiros tempos, reagimos pacientemente aos saltos que abanavam o tecto e aos cantos em iídiche em decibéis acima dos que gostaríamos. O sabat prolongava-se muitas vezes depois das dez da noite, até ao dia em que o meu marido teve uma conversa educada mas séria com o senhor Sternlicht. Desculpou-se e pediu ao João que sempre que o barulho nos incomodasse tocássemos à campainha, fosse a que horas fosse. A técnica revelou-se eficaz. No dia seguinte quando chegámos a casa tínhamos um saco pendurado na caixa de correio com meia dúzia de patés à base de salmão fumado. Quatro anos passados e ao fim de cada Purim, Rosh Hashanah, Yom Kippur, Hanukkah, entre outras celebrações judaicas o salmão fumado continua a representar a “Oferta pacífica”*. Também somos presenteados com um carregamento extra no Natal ou noutras ocasiões especiais.
Há duas ou três semanas a vizinha do prédio ao lado estava encostada à ombreira da porta de casa dela a falar ao telemóvel. Continua a vestir-se de escuro mas desde a primeira vez em que falámos teve mais dois filhos. Acenei-lhe e apontei para o casaco semiaberto que não esconde a minha barriga de final de gravidez. Fez-me um grande sorriso e um sinal com a mão para que esperasse por ela. Aproximou-se e como se me piscasse o olho disse-me no seu inglês conservado da vida de solteira em Brooklyn: “Qualquer dia apanhas-me!”, continuando depois a conversa em iídiche ao telemóvel. Já faltou mais é verdade, muito em breve seremos cinco e, pelo sim, pelo não, reservei a primeira prateleira do frigorífico para mais umas postas de salmão.
* Oferta pacífica ou de paz era um dos sacrifícios e ofertas na Bíblia hebraica. Há três tipos de Oferta pacífica: ofertas de gratidão, ofertas por um voto e ofertas voluntárias.