Não há nada mais assustador do que ver a ignorância em ação. À frase lapidar de Goethe, acrescentaria mais informação à luz dos dias de hoje: não há nada mais assustador do que ver a ignorância em ação e aos comandos de uma nação.
Desde a semana passada que o mundo tem um novo reality show. Chama-se Big Show Trump, edição Covid, e tem assombrado o planeta. O espetáculo tem tanto de inverosímil como de estapafúrdio e tragicómico: um Chefe de Estado que recusou com todas as suas forças as evidências da ciência e desvalorizou o perigo do vírus é apanhado em força por ele no momento mais decisivo de arranque da campanha eleitoral, em que a volta à América é fundamental para captar votos e apanhar indecisos. Como uma assombração, a nuvem do novo coronavírus penetrou na Casa Branca – contam-se já, pelo menos, 20 contaminados por causa deste surto.
Parece o desfecho de um enredo sobre o “karma”: o inimigo invisível e desvalorizado teve todas as condições para ganhar terreno perante a incúria, a ignorância e a irresponsabilidade de uma equipa que não tem a mais pequena ideia do que está a fazer durante uma pandemia mortal. As máscaras, os instrumentos mais eficazes para evitar a propagação do vírus, foram diabolizadas e transformadas em bandeira de apoio político à fação oposta. Estás comigo, não estás com máscara. O resultado está à vista, como uma chapada de luva branca do Universo contra a desfaçatez e a prepotência. Trump e a sua entourage podem passar entre os pingos grossos da chuva, escapar a inquéritos e a impeachment e à rede de checks and balances constitucionais, mas não escapam ao vírus que não quer saber de status, idades, condições sociais e contas de Twitter. A moral da história é idêntica à de uma tragédia grega 2.0: os humanos estúpidos que ousam desafiar os deuses, ou as leis da Natureza, estão tramados.
Mas sendo Trump um dos maiores egocêntricos da História dos egocêntricos no poder, um desfecho trágico não traria uma lição aprendida e um banho de humildade, claro está. Em vez de se concentrar em recuperar e proteger os outros num país onde há 7,4 milhões de infetados e mais de 210 mil mortos com a doença, Trump prossegue no desvario de autoidolatria. Pondo em causa a saúde e vidas alheias, desde o teste positivo que continua a tentar mostrar que nada o derruba: são as fotos encenadas como se estivesse a trabalhar, os vídeos editados para não se ver o momento da tosse, a saída desnecessária para acenar aos apoiantes, os tweets que dizem para os americanos não temerem o vírus e não se deixarem dominar por ele, a saída precária do hospital, questionada por todos os médicos credíveis mas apoiada pelo seu clínico de eleição, especialista em osteopatia. Tudo isto a somar a informações contraditórias acerca do seu estado de saúde prestadas por elementos da sua equipa, e à incongruência de planos terapêuticos de fim de linha prestados a uma pessoa que se diz “just fine”. Tudo é possível neste “tremendous” Big Show Trump, versão Covid. Até mesmo a cena da chegada à Casa Branca, que culminou com o momento que mais ansiava mostrar ao mundo: máscara fora! Que se lixe o exemplo para a nação, e já agora os funcionários e o resto do staff político.
Há pouco tempo, tudo isto seria inimaginável, ou pelo menos inimaginável sem consequências. Mas esta é a América de 2020, enleada num retrocesso civilizacional e humanista sem precedentes, dividida, destroçada, desesperançada e capturada pela boçalidade, pelo simplismo e pelo egoísmo. Este é o Big Show Trump. Não há impossíveis, só há ignorância em ação e aos comandos.
Talvez, porém, a chapada de luva branca do Universo não se fique por aqui. Talvez o guião do Show lhe saia do controle. Para os eleitores mais velhos, inseguros e muito desagradados com a sua resposta errática à pandemia, esta pode bem ser a gota de água. Um homem que se desloca de helicóptero do hospital de sua casa para o hospital que o aguarda com os tratamentos de ponta a que mais ninguém tem acesso continua a desvalorizar a pandemia e a dar conselhos irresponsáveis. Os seniores que fazem a sua reforma na decisiva Flórida estarão a fazer contas à vida – em quem devemos acreditar, afinal: na segurança de Biden ou no estrambolismo errático de Trump? Se tudo correr como previsto no Big Show Trump, edição Covid, o Presidente recuperará num ápice e fará os rallies decisivos pelo país. Mas, oito pontos atrás de Biden nas sondagens, o lastro do seu ego indomável pode bem deixar mossas irreparáveis. Sendo certo que da Casa só sairá expulso e arrancado pelos cabelos…