Sempre se soube que não há nada como um novo facto político para se esquecer o anterior. Com o imbróglio Centeno a pairar há demasiados dias, e aproveitando a popularidade que ambos granjeiam em tempos de pandemia, António Costa lançou o tema das presidenciais para cima da mesa, ao dar o apoio do PS a Marcelo Rebelo de Sousa. Costa não quer perder tempo a discutir o que, na sua cabeça e nas sondagens, já não tem discussão: Marcelo será reeleito, e se o PS não consegue vencê-lo, mais vale juntar-se a ele.
Preparava-se para fazer o mesmo que Cavaco Silva fez em 1991, quando o PSD decidiu não apresentar candidato contra o popularíssimo Mário Soares, que se apresentaria em grande força ao segundo mandato. O PSD não tinha nomes óbvios que quisessem avançar e realmente fazer frente a Soares, as coisas apesar de tudo não tinham corrido mal entre governo e Presidente, e por isso não fazia sentido batalhar numa luta que estava ganha à partida. Convocou um congresso e conseguiu fazer aprovar a moção que permitia não apresentar candidato e assim, tacitamente, deixar seguir a caravana de Soares sem sobressaltos até Belém. O resto é história: Soares foi eleito com o melhor resultado de sempre na democracia portuguesa, com mais de 70% dos votos, e fez a vida negra a Cavaco no segundo mandato, com conspirações, intrigalhada política e vetos sucessivos.
Costa atalhou o passo de reunir o apoio do partido, que chutou para depois das Presidenciais, e isso fez com que a enfant terrible Ana Gomes voltasse à boca de cena. Ela, que publicamente já se tinha arredado do tema presidenciais, voltou a dizer agora que iria ponderá-lo, furiosa com a forma com que as coisas foram feitas.
O seu perfil de contestatária de causas, a raiar uma espécie de populismo de esquerda que cavalga o tema da corrupção e da justiça, poderá dar-lhe vantagens, mais do que contra Marcelo Rebelo de Sousa, na outra grande corrida que se trava nestas eleições: a que se luta contra André Ventura. A verdade é que todos o desvalorizam e o apequenam, mas nenhum político quer ficar atrás dele na corrida de janeiro.
E enquanto os outros desconfinam a política, Ventura soma e segue, de oportunidadezinha em oportunidadezinha para engrossar a caravana que passa em tempos de pandemia com os descontentes e os desiludidos do sistema. Como contamos nesta edição, à esfera do futebol Ventura juntou agora a esfera da fé, ao mobilizar a influência das igrejas evangélicas que envolvem muitos milhares de pessoas em Portugal.
A 13 de maio, deixou bem clara a nova estratégia que perdura há muitos meses: vender-se como um enviado de Deus, uma espécie de quarto pastorinho que vem salvar a nação lusa da pouca-vergonha, a palavra mais ouvida nas sessões que continua a fazer sistematicamente pelo País.
É bom de ver que estes são tempos favoráveis aos populismos e aos discursos extremados, e André cavalgará o medo e a ignorância como quem monta um puro-sangue lusitano: num passo confortável e seguro, em que levará como bandeiras o estado da saúde, a corrupção, a justiça, a segurança e a moral. Rodeado de fascistas, ultraconservadores e extremistas de movimentos vários, usando as redes sociais como pólvora, vocifera contra tudo o que vê como “diferente” para engrossar a sua horda da moral, dos bons costumes e dos valores de antigamente. De quando em vez, lá surge nos seus eventos uma saudação nazi, que sai do guião que desenhou para recolher votos, e isso aborrece-o porque escaqueira à vista de todos a essência do Chega. Mas como bom estudante que é da cartilha populista, prossegue devagar, pelas franjas, e vai ao longe. Quase, quase a morder os calcanhares ao BE e bem à frente da CDU, do PAN, do PP e da Iniciativa Liberal, conseguiu, por exemplo, no fim de março, cerca de 8,2% das intenções de voto numas sondagens para as legislativas, indo buscar votos ao mau momento do CDS e aos indecisos. Nas últimas sondagens presidenciais reveladas há dias, estava com 7,4%, mas atrás de Ana Gomes, que atingiu os 8,2%. Se ela quiser entregar-se ao sacrifício de correr para perder, terá com toda a certeza isso de bom: lutar contra Ventura no terreno onde ele agora está sozinho (e onde um eventual candidato Adolfo Mesquita Nunes não entrará), que é o da “moralização” do sistema, da moralização e das boutades. Mas mantendo, apesar de tudo, os valores democráticos que a ele lhe faltam. E isso, nos tempos que correm, parece ser pedir pouco mas tem valor significativo