O Rei Midas era um grande homem. Tinha capacidades raras, tão raras como o dom de transformar tudo o que tocava em ouro. No entanto, fruto de um incidente com Apolo, ganhou orelhas de burro, que tentava disfarçar com uma farta cabeleira. Este seu segredo era apenas conhecido de um homem a quem ele não poderia escapar: o seu barbeiro. Tinha ele instruções específicas para nunca abrir a boca e revelar a miserável condição de Midas, esse homem extraordinário, mas não tanto aos olhos de quem o conhecia na intimidade. Só que o barbeiro era um homem fraco de espírito, incapaz de guardar para si este sigilo. Como tinha de o partilhar ao mundo, mas temia pela sua vida se o fizesse, decidiu cavar um buraco e dizê-lo lá para dentro. Soltou para a cova o grito que lhe rebentava do peito: “O Rei Midas tem orelhas de burro!” Tapou a cova bem tapada, mas em breve nasceram ervas altas dessa terra que bradavam aos sete ventos o embaraço do grande Midas. Estava revelado o segredo e para sempre desfeita a honra do rei mas, sobretudo, do tolo e indigno barbeiro.
Esta história da mitologia grega, que aprendi nas aulas de ética (benditos os alemães que a têm como disciplina curricular), devia ser servida aos miúdos em pequenos. Os traços de caráter mais nobres – como a integridade, o respeito, a benevolência, o sentido de justiça e o valor da palavra dada – aprendem-se no berço, pela educação e pelo exemplo. São estes os alicerces de uma massa humana que é moldada pelas vidas de cada um e pelos caminhos que escolhemos percorrer. Algumas profissões são mais exigentes do que outras, é um facto. Advogados, padres, médicos e jornalistas são, por dever de ofício, guardiães de segredos. Alguns deles ficam a rebentar no peito, como o do barbeiro. Mas que só podem ser revelados se, por notório interesse público, for imperativo denunciá-los. É difícil, é verdade, mas quem não quer ser lobo (ou não tem fibra moral para isso), não lhe veste a pele.
Chega ao ponto em que tenho de fazer um disclaimer. Não conheço José António Saraiva, que acabou de colocar no mercado o livro Eu e os Políticos. Nunca trabalhei com ele no Expresso – cheguei lá depois de já ter saído e levando metade da redação consigo com o intuito de desfazer o órgão de comunicação que o transformou de arquiteto frustrado em diretor de um órgão de comunicação poderoso. Note-se que não digo homem poderoso. Saraiva nunca o foi verdadeiramente por direito próprio – como se viu quando saiu pela importância que o País lhe concedeu. Há cargos que, graças a um ADN forte das instituições, prevalecem às figuras que os ocupam (e até conseguem sobreviver apesar delas).
Li o livro, sim. Não poderia falar dele sem o ter lido, exijo fazer a minha própria avaliação antes de me pronunciar – infelizmente, é também dever de ofício dos jornalistas vasculhar no lixo em busca de histórias, mesmo que com o estômago em ebulição. E só escrevo sobre ele porque é imperativo, como jornalista, demarcar-me.
Eu e os Políticos é um exercício egocêntrico e desesperado de um homem que se quer colocar na ordem do dia, quando os dias já o tinham metido na ordem. Escuda-se que já não é jornalista, como se o dever de manter segredos ou sigilo se esvaísse assim que se tira o casaco. Revelam-se segredos privados alheios, supostas conversas íntimas e confissões desprovidas de qualquer interesse público, feitas ao abrigo de uma relação de confiança com um suposto jornalista com ética, que afinal não passava de um homem fraco, como o barbeiro de Midas. Não sei o que me indigna mais: se a imoralidade e ilegalidade (sim, há aqui crimes de devassa da vida privada, violação e aproveitamento indevido de segredo) destas revelações, se o ridículo da importância que um pequeno homem de pequeno mundo vê nelas.
Não há nada de importante neste livro, nenhuma história de bastidores minimamente relevante. Apenas insignificantes mexericos, tristes considerações e, sobretudo, uma indignidade contagiosa.