Em quase tudo há um antes e um depois. Na Justiça, é seguramente o processo Casa Pia que marca a fronteira. Não que faltem exemplos anteriores igualmente polémicos em desabono do Direito que por cá se aplica, mas o processo que teve Carlos Cruz como cabeça de cartaz e algumas outras personalidades de relevo como figurantes deixou marcas indeléveis. Recordo também o caso do corretor Pedro Caldeira que foi preso nos EUA, numa intervenção estilo filme de série B e esteve numa das piores prisões norte-americanas, a pedido das autoridades portuguesas, e acabou absolvido. Lembro o caso do fax de Macau em que o ex-governador Carlos Melancia foi absolvido da acusação de se deixar corromper e três dos seus amigos foram condenados por o terem corrompido, uma situação possível por o primeiro ter tido um julgamento separado do dos restantes. Bem como o de Vale e Azevedo, que foi libertado para ser preso minutos depois, ainda à porta da cadeia.
Com os recentes feitos das investigações, com as ameaças que pendem sobre alguns poderosos, começa a haver alguma tranquilidade em volta da nossa Justiça. Só o caso Sócrates agita as águas, sendo que a julgar pelo que se lê e ouve – outro poderá ser o sentimento geral – o ex-primeiro-ministro não tem conseguido ganhar terreno – exceto na simpatia crescente que sempre fatura quem compreensivelmente se queixa das demoras nas investigações.
Nos últimos dias, e graças a um texto do advogado Francisco Teixeira da Mota, publicado no Público de dia 29, fui despertado para outro episódio macabro.
Falo de quê? Carlos Cruz e Manuel Abrantes foram ambos condenados a pesadas penas no Casa Pia: o primeiro tivera uma sentença de seis anos de prisão, dos quais cumprira dois terços; o segundo, cinco anos e noves meses, dois terços dos quais também já passados. Como prevê a legislação, ambos voltaram a solicitar a liberdade condicional que em outras ocasiões já lhes tinha sido negada. Questão central para as anteriores recusas recebidas sempre fora a que ambos se recusaram a aceitar que tivessem cometido os crimes, pelo que não frequentaram quaisquer ações ou tiveram acompanhamento psicológico adequado aos crimes por que foram condenados. Tudo coerente? Sim, por enquanto.
O incompreensível chegou a seguir: é que Carlos Cruz teve o seu pedido satisfeito, enquanto igual requerimento de Manuel Abrantes foi recusado.
A questão central foi, uma vez mais, a insistência de ambos em se declararem inocentes. Perguntam os dois juízes da Relação de Lisboa que obrigaram Manuel Abrantes a continuar na Carregueira: “Mas se nem sequer se assume responsável pelos seus crimes como pretende que se acredite que não os voltará a cometer se mantém essa negação?” Relativamente a Carlos Cruz, libertado dia 7 de julho frente a inúmeras câmaras de televisão, que disseram os desembargadores que lhe calharam em sorte: “Entendemos que o facto de não assumir o crime e não querer participar em programas de recuperação voltados a crimes sexuais é manifestamente insuficiente no caso concreto para afirmar que existe um perigo concreto de reincidência.” Siga, então, em liberdade condicional. É evidente que os acórdãos são bem mais extensos, mas estas frases são elucidativas.
Um acórdão é da 5ª secção, o outro da 3ª. O tribunal é o mesmo. A sorte dos reclusos foi diferente. Não vale o argumento de que a Justiça é feita por homens. É que ela também é praticada contra ou a favor de (outros) homens. Os erros da Justiça ninguém paga, mas há quem muito sofra por eles. Talvez este tipo de contradições seja impossível de evitar. Mas não é aceitável que não haja uma instância que nos explique estas divergências e que seja capaz de as corrigir. A liberdade não pode depender da maior ou menor sensibilidade de juízes, dos seus rigores, crenças, humores, convicções.
Esteve mal a Justiça? Obviamente. E a Comunicação Social não esteve muito melhor. A dualidade de critérios sobre Cruz e Abrantes passara despercebida e julgo que apenas o Correio da Manhã e o Jornal de Notícias (constato agora, após pesquisa a arquivos e ao Google) a noticiaram. Fosse Manuel Abrantes figura mediática e outra teria sido a repercussão.