Há alguns anos contei aqui um episódio que me marcou muitíssimo. Iria estar menos de 24 horas em Mumbai. Era a primeira vez que “visitava” a cidade. O voo de regresso era já dali a pouco, às duas da manhã. Enfiei-me no primeiro táxi que encontrei e desafiei o motorista a guiar-me por uma visita. Escolha você o itinerário. Quando, depois de um dia intenso mergulhado no caos fascinante que é aquele formigueiro chamado Mumbai, se preparava para me deixar de novo no aeroporto, já sabíamos quase tudo sobre a vida um do outro. Ele era casado, tal como eu, e tinha, tal como eu então tinha, um único filho. Um rapaz de 5 anos. Vivia ali mesmo. Num bairro da grande metrópole. Despedi-me imaginando que eram mais do que horas para que rumasse a casa. Qual quê. Que não. Há mais de seis meses que não vou a casa. Estamos na época alta e não posso desperdiçar uma corrida. Como e durmo no táxi durante metade do ano. E eu, pasmo, a saber que na outra ponta do meu avião estava Paris onde se discutia a semana das 36 horas ou o diabo a quatro. A 9 horas dali.
Foi a minha primeira aula prática sobre globalização. Recuei então às aulas teóricas de Ernâni Lopes naquelas manhãs chuvosas de faculdade. A pressão demográfica do Magrebe. O Mundo a encurtar. As diferenças de níveis de vida impossíveis de sustentar num planeta cada vez mais ali, ao virar da esquina.
Fast forward. Agosto de 2015. De permeio, o colapso da primavera árabe, a implosão da Síria, a Líbia feita laboratório de Hobbes, o Boko Haram, o Isis, e sabe Deus (que dali prudentemente desapareceu) o que mais. Tudo que me ensinou Ernâni, tudo o que intuí naquela noite escaldante de Mumbai, desenrola-se agora, em jeito de inqualificável drama, já ali, do lado de lá do muro do meu jardim.
Não tenho, confesso, capacidade para propor qualquer solução completa. Só tenho por certas algumas certezas que eventualmente serão só minhas: os fenómenos migratórios sempre existiram e tornaram-se absolutamente imparáveis com a globalização (o meu taxista de Mumbai está a 9 horas de Paris); a Europa é fundada em valores incompatíveis com a ideia de se transformar num luxuoso condomínio cercado por uma favela do tamanho do Mundo; a Europa (a começar por Portugal mas passando também pela Itália, pela Irlanda, e até, em menor escala, pela Alemanha) sempre encontrou, ao longo da história, asilo fora das suas fronteiras (dos EUA ao Brasil), e isso não deixa de ser uma dívida moral com todos quantos fogem à miséria, à guerra ou à perseguição política; finalmente a Europa tem um sério problema demográfico para resolver ao longo das próximas décadas.
Esqueçam portanto a Grécia e as desventuras do Syriza. O futuro da Europa passa, muito provavelmente, mais pela forma como enfrentar este retrocesso civilizacional que é o drama dos migrantes do que por qualquer outra crise em Atenas (que aí virá). E eu só intuo que ele passa, também mas não só, por um abrir de portas muito mais lúcido e generoso (ainda que controlado) do que aquele com que muitos líderes europeus, reféns dos seus populismos e racismos caseiros, têm sido capazes de se comprometer.
Para vergonha da esquerda, das direitas extremas e até dos vários aprendizes do liberalismo colado a cuspo (pois até o The Economist clamava esta semana: “let them in”), a verdade é que quase só a Sr.ª Merkel revela algum bom senso em todo este drama sórdido.