1 É verdade que muitas vezes não temos consciência da imensa pegada digital que todos os dias deixamos. ?É verdade que nem sempre nos lembramos que cada fotografia que partilhamos, cada aplicação que usamos, cada pagamento que fazemos, cada jogo que jogamos, cada site que visitamos, cada comentário que deixamos, diz uma imensidão sobre o que somos. E que o diz a todos e para sempre.
É verdade que a cultura de partilha permanente de que se faz o mundo digital tem, por outro lado, inúmeras vantagens. O conhecimento flui, a inovação floresce, as barreiras esbatem-se.
E, mais prosaicamente, é até verdade (sejamos honestos) que a gratificação de um like sabe bem a qualquer um, que uma graçola no Twitter chega por vezes a ser irresistível, e que um amigo no Facebook parece ser isso mesmo, para mais num Mundo que é muitas vezes de solidão acompanhada.
Mas isto dito, devo confessar que me espanta e me preocupa a facilidade com que, no mundo contemporâneo, abdicamos voluntária e levianamente da privacidade. Como se tivesse um valor relativo. Como se não fosse um valor fundacional de qualquer sociedade democrática e liberal.
Devo estar a ficar velho. Mas não consigo esquecer as lições do passado. Não me esqueço de que todos os totalitarismos se alimentaram da aniquilação deliberada da privacidade. Ou, o que é dizer o mesmo, que a história do século XX nos ensinou de forma brutal que não há liberdade sem privacidade.
Que decidamos, no nosso perfeito juízo, abdicar daquela, é para mim um dos grandes mistérios do mundo em que vivo.
2 E é por ser particularmente sensível ao tema que a polémica sobre a lista de contribuintes VIP me poderia parecer perfeitamente ajustada. Poderia mas não parece. Pela simples razão de que se funda em dois equívocos.
O primeiro é o de presumir que a existência da dita lista torna todos os que não estão nela incluídos mais desprotegidos. Não sei se é fácil violar a informação fiscal de cada um de nós. Não me custa acreditar que seja. E se assim for, é evidente que estamos perante uma gravíssima violação da privacidade promovida ou pelo menos levianamente permitida pelo Estado. E é evidente que nos é devida uma explicação e, mais importante, uma rápida e eficaz solução. Mas isto dito, nada do que estamos a discutir é evidentemente consequência de qualquer lista. Se o problema existe, existe antes da existência de qualquer lista. Se estávamos desprotegidos não passámos a estar mais pelo facto daquela existir. Se não estávamos, não passámos agora a estar. Misturar os dois temas pode muito bem ser picante mas não é intelectualmente sério.
O segundo equívoco é mais importante e mais revelador do mundo em que vivemos. E consiste em presumir que, por trás da ideia, está uma vontade de conceder um privilégio a uma qualquer classe especial de cidadãos. Ora, mais uma vez, não me parece sério partir desse pressuposto. Pela simples razão que há razões (que o coração populista desconhece) absolutamente válidas e absolutamente defensáveis para criar uma lista de contribuintes especialmente protegidos do crime de devassa da sua informação fiscal. Porque há cidadãos particularmente expostos a esse tipo de crime, há que tratar de forma diferente aquilo que é obviamente diferente. E não é o facto desses cidadãos serem altos dignitários do Estado ou políticos de relevo que deve impedir-nos de aceitar a sua especial proteção. Será politicamente incorreto mas é profundamente justo. ?Da mesma maneira que não quero viver num Mundo em que me seja negado o direito à privacidade, da mesma maneira que me preocupa que tantos de nós dela abdiquemos levianamente, recuso-me a tratar quem quer que seja como cidadão de segunda nesta matéria. Quero ver os meus governantes seriamente escrutinados na sua ação política. Revolta–me a ideia totalitária (que evidentemente pulsa por trás desta polémica) de que devem abdicar de ter qualquer esfera de privacidade.