O menino Jesus de Alberto Caeiro, como todos saberão, fugiu do céu. Achava aquilo uma chatice. Para além do mais fartava-se de dizer mal de Deus e do seu paraíso. Que “é um velho estúpido e doente, sempre a escarrar no chão e a dizer indecências. A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia. E o Espírito Santo coça-se com o bico e empoleira-se nas cadeiras e suja-as.”
Sempre gostei deste poema de Pessoa. Quanto mais não fosse porque imagino, também eu, os meus filhos “a dormir dentro de mim”, “a brincar com os meus sonhos” e a “virá-los de pernas para o ar”. Mas não é esse, agora, o ponto. Gosto do Jesus verdadeiro de Caeiro, do “humano que é natural”. Gosto do seu Deus imperfeito e da denúncia sábia e comovedora do que seria uma vida de perfeita perfeição.
A verdade é que implico, também eu, com a perfeição. Desde logo porque o conceito é, o Jesus de Caeiro que o diga, uma monumental chatice. Desconfio dos Santos e se vivesse no céu (cenário que se afigura muito pouco provável) também eu me pirava. Não concebo maçada maior do que passar uma tarde sentado no paraíso, ao lado de Santo Agostinho, sem uma imperial fresca à mão de semear, a ouvi-lo perorar sobre o pecado original. Além do mais, a perfeição é inalcançável. É o atalho mais curto que conheço para uma depressão das antigas. Mas divago outra vez.
Mesmo cá por baixo, devo confessar que me irrito com os excessos de proclamada virtude. Que é a declinação terrena da ideia, divina, de perfeição. Não gosto de ver excessos de virtude em minha casa ?(o que é uma conversa entre pai e filho sem um palavrãozito que seja, uma deriva escatológica, ou um clandestino concurso de arrotos?). E menos gosto ainda de vê-los, aos excessos de virtude proclamada, na minha cidade. Que é como quem diz na política. Que eu saiba, e sei muito pouco, o último exemplo conhecido de um político absolutamente virtuoso que não acabou em tragédia é o de Lucius Quinctius Cincinnatus. Já lá vão 2500 anos e ninguém tem a certeza de que a história não tenha sido dourada com o tempo. Depois disso é longa a lista dos autoproclamados impolutos, de Savonarola a Guevara, que acabaram nas teias de insanáveis contradições que se conhecem.
Dito de outra maneira, na política, gosto de gajos normais. Mas desenganem-se se pensam que vou fazer a apologia do niilismo ou do relativismo. Gosto, por razões de puro pragmatismo, de tipos genericamente sérios, que no essencial sejam probos, mas humanamente incapazes de resistir a um ou outro pecadilho que lhes despenteie minimamente a alma. De todos os demais, permitam que vos confesse, tendo a desconfiar muito.
Nada disto parece, mas tudo isto tem a ver com a imperfeição, subitamente revelada, da história fiscal do PM. Perguntam-me se aplaudo um esquecimento manhoso ?da contribuição para a Segurança Social ?(e estou obviamente a admitir que a história é só esta)? Em consciência não o posso fazer. Mas perguntem-me se prefiro o homem essencialmente sério a quem foi descoberta uma das várias carecas que inevitavelmente há de ter, ou o santo impoluto que caminha, etéreo, sobre as águas da Manta Rota a Massamá. Pois dir-vos-ei, sem ponta de hesitação, que gosto mais do primeiro. Até porque o primeiro é obviamente o único que existe.
Nada disto faz de mim, evidentemente, um súbito admirador acrítico do PM e das suas políticas. E nada disto me impede de reconhecer que foi o próprio Passos que criou o culto de santidade que agora se esboroa com os custos políticos de que só os portugueses determinarão o alcance. ?O ponto essencial que quero sublinhar é este: no dia que passarmos a exigir dos nossos políticos a perfeição absoluta, no dia em que, em resposta, os nossos políticos se deixarem cair na tentação suicida de construir máscaras de inabalável virtude, no dia em que transformarmos exclusivamente a discussão política na constatação de que estes não são os santos que nós também nunca seremos, estaremos a abrir caminho ao populismo mais desbragado.
A democracia não é, nunca será, o regime que almeja eleger os perfeitos. A democracia é um mecanismo eficaz para correr com os mais imperfeitos. Deixemo-nos pois de hipocrisias e discutamos, por uma vez que seja, o que realmente queremos para o futuro da cidade.