A economia, já todos o devíamos ter percebido, não é do domínio do religioso. Faz uso, de econometria, de fórmulas matemáticas avançadas, de modelos sofisticados mas, em boa verdade, não é sequer uma ciência exata. É uma ciência social. O seu material de trabalho base é o imprevisível comportamento humano. Com todas as suas subtilezas, diferenças, contradições e até – pasme-se – irracionalidades. A economia não é portanto lugar para dogmas ou para certezas irrefutáveis. Muito pelo contrário. ?A economia, como qualquer ciência, só verdadeiramente avança graças aos métodos das conjeturas e refutações. As verdades são, por definição, sempre tentativas e teoricamente refutáveis. As verdades são meros postulados (ou conjeturas) que são válidos até ao momento em que alguma evidência consiga provar que estão errados. É célebre a história do cisne negro. Não me basta observar 100 cisnes brancos para poder afirmar, sem sombra de dúvidas, que todos os cisnes são brancos. E basta aliás a observação de um simples cisne negro para refutar essa teoria.
Não parece. Mas esta conversa vem toda a propósito do Syriza. Em condições normais, entre gente de boa vontade e entre cidadãos de boa fé, aquilo que se devia estar a passar nas instituições europeias, era um debate sereno sobre os méritos e deméritos da política de austeridade nos exatos termos em que tem vindo a ser postulada por Berlim. Em termos científicos (e assumo que nado para fora de pé quando falo em ciência), aquilo que deveria estar em causa era uma aferição sem apriorismos sobre o que a evidência recolhida pela experiência grega nos diz sobre a validade da conjetura: “A melhor solução para resolver a crise das dívidas públicas é a austeridade tal como definida até aqui.” Em condições normais, e por respeito ao resultados das eleições livres e democráticas na Grécia, toda esta abertura de espírito seria, repito, o mínimo exigível a gente de boa fé e intelectualmente honesta.
Infelizmente para a Grécia e para a Europa, ninguém está a tratar de economia em Bruxelas, Berlim ou Lisboa. Estamos todos a tratar de política, quando não de religião. Explico. Entre os dirigentes europeus o que verdadeiramente interessa não é saber se as propostas económicas do novo governo grego fazem um mínimo de sentido. Ninguém quer realmente saber se a política económica europeia deve ser minimamente aferida e ajustada à luz da experiência grega. It’s politics, stupid. ?O cálculo que todos e cada um dos dirigentes europeus faz é o de saber quais os efeitos de uma mudança de política teria no deve e no haver dos seus equilíbrios eleitorais caseiros. A senhora Merkel, onde tudo tem começado e acabado, construiu toda uma narrativa que, na medida em que se apoia na dicotomia simplista norte/sul, é de um populismo e de um maniqueísmo impossíveis de desmontar. O dilema aprisionado do Governo português, na sua condição de bom aluno europeu, é também de natureza iminentemente política.
Mas há pior. Para grande parte da intelectualidade europeia que tem animado o debate em torno das propostas do Syriza, o que verdadeiramente está em causa não é verdadeiramente uma aferição honesta dos resultados das políticas económicas europeias. E muito menos interessa o bem estar dos gregos e dos europeus em geral. Na Europa o debate tornou-se, de facto, do domínio do religioso. ?É um debate de dogmas, de convicções personalizadas, inabaláveis, profundas e sobretudo insuscetíveis de ser postas em causa. Interessa mais conservar a razão do que melhorar as políticas. Interessa mais a vaidade de manter de pé um edifício intelectual que se construiu do que, repito, o bem estar dos gregos, dos portugueses ou dos alemães.
A verdade é que há na Europa um pensamento político dominante e que se quer tornar hegemónico à bruta. É isso que me me revolta. Muito mais que a derrota das ideias semi tresloucadas de um Syriza em que nunca votaria mas a quem reconheço o direito a ter voz.
PS: escrevo antes das reuniões de segunda-feira e sexta-feira. Pode ser que nessa altura tudo tenha mudado. Se assim for, passe à frente. A VISÃO tem mais e melhor para ler