À atenção da Ministra da Cultura, Graça Franco.
À hora que comecei a escrever esta crónica, ainda não tinha sido anunciado o cancelamento do TV Fest que, em menos de 48 horas provocou uma onda de polémica rápida e, felizmente letal. A petição contra o mesmo reuniu mais de 19 mil assinaturas e Sra. Ministra, em declarações à Agência Lusa, anunciou que iria repensar o projeto. E faz s Sra. Ministra, porque isto era um grande disparate.
Antes de começar esta crónica, fui consultar o seu CV publicado no Wikipedia e amplamente divulgado em inúmeras notícias s sites e percebi que nestas andanças da cultura não anda aqui há muito tempo, certamente há muito menos do que eu, que publico romances há vinte anos. Tal como todos os profissionais da cultura, não recebo 14 meses de ordenado nem tenho ajudas de custo, não tenho ADSE, nem direito a nenhum seguro de saúde. E tal, como os profissionais da cultura, vivo exclusivamente do meu trabalho que no meu caso é escrever ficção e crónicas na imprensa. Nunca recebi nenhum subsídio para nenhum trabalho ou projeto, portanto sou mesmo aquilo a que se chama uma profissional liberal.
Os momentos de clivagem, com todo o sacrifício a que obrigam e toda a angústia que acarretam, servem para anular as zonas cinzentas. Ou somos generosos e ajudamos o próximo, ou somos mesquinhos e continuamos na nossa redoma. Em tempos de crise, há sempre aqueles que choram e aqueles que vendem lenços, mas também há os que arregaçam as mangas e conseguem pensar de forma global e estratégica. Ora uma iniciativa com as características do TV Fest era o oposto disso.
Estou a par que a Sra. Ministra está em vias de anunciar medidas que vão ajudar a cultura nas suas várias vertentes, as quais, enquanto profissional do meio artístico, aguardo com expectativa e alguma reserva.
Se a cultura é para todos, e os dinheiros públicos são pagos por mim e por todos os cidadãos que fazem parte da população ativa, um festival com cerca de 120 músicos, escolhidos uns pelos outros, não fazia sentido. Tal como não fazia sentido a verba de um milhão de euros que, divididos por 120, são 8,333,3333 euros por espetáculo. Parece-me um valor bastante inflacionado por artista, a não ser que faça parte da performance do dito engolir diamantes. E porquê uma iniciativa para músicos em particular? E o teatro, o cinema, as artes plásticas e a literatura? Ou o sol, quando nasce afinal não é para todos? É que da minha janela ainda é. E neste meio, tal como em todos os outros, ninguém trabalha sozinho.
Vamos falar de livros, já que esse é o meu ofício. Sempre que me sento para escrever um romance, as pessoas podem ser levadas a pensar que, quando estiver acabado, já está, é só imprimir e distribuir nas livrarias. Mas não é assim. Sem um editor, um revisor de provas, um paginador, uma assessora de comunicação e um distribuidor, o meu livro não chega às pessoas. Ah, claro, e sem designer que faça a capa também não, portanto o meu trabalho que, aparentemente só depende da minha vontade férrea em escrever, não é possível sem uma equipa. Agora imagine uma peça de teatro, um filme, um espetáculo de bailado ou de música e multiplique por dezenas ou centenas de pessoas que fazem com que ele seja possível: técnicos de luz, guarda-roupa, aderecistas, cenógrafos, sonoplastas, carpinteiros, costureiras, produtores, maquilhadores e outros profissionais que trabalham no backstage para tornar possível a realização daquele evento. Esses profissionais estão privados de exercer as suas profissões, já que este é o ano de todos os cancelamentos, muitos não têm dinheiro para pagar a renda ao final do mês.
Somos milhares de profissionais a ganhar a recibos verdes, obrigados a descontar para a segurança social mesmo nos meses em que não ganhamos nada, presos a uma teia frágil e incerta. Podíamos ter escolhido a virgula maníaca do modo funcionário de ser que Alexandre o’Neill descreve no seu retrato impio de um Portugal alienado em Um Adeus Português, mas somos da cultura e das artes, a nossa missão é fazer as pessoas felizes com canções, livros, peças de teatro, bailados, quadros, esculturas, filmes, etc.
A nossa missão é a nossa vocação e vice-versa, vivemos para o nosso trabalho ainda que nem todos consigam viver dele. O TV Fest, mais do que uma ideia infeliz e um tiro no pé, tratou-se de uma iniciativa discriminatória e ofensiva para todos os profissionais da cultura, e mais uma vez um sinal inequívoco de que a cultura é um lobby que serve apenas alguns e em geral, sempre os mesmos. Este tipo de iniciativas só aumenta o fosso entres os escolhidos de uma autodenominada elite e todos os outros profissionais. Que são milhares, Sra. Ministra, milhares.
Não sei qual o seu amor à cultura, o que senti neste episódio infeliz foi um grande desamor, acompanhado por total falta de noção e falta de respeito pelas pessoas que deveria defender e proteger com a sua pasta ministerial em favor de um ato de clientelismo, criando uma corrente fechada numa panelinha de amigos.
Há mais de meio século que o saudoso escritor e poeta José Gomes Ferreira disse acerca da sociedade portuguesa, somos sempre os mesmos 300. É triste ver que perante uma calamidade desta envergadura, quem está no poder não consiga pensar de forma estratégica e global para o bem de todos. O desamor à cultura em Portugal é sintomático e sistémico. Mas está a tempo de corrigir a rota, portanto, se vai repensar, aproveite para o fazer por forma a ajudar aqueles que mais precisam. Pegue nesse milhão de euros e distribua-o de forma inteligente e justa.
Não reencarnei em Jesus Cristo para lhe revelar o segredo do milagre da multiplicação dos pães, nem tenho formação ou prática em gestão cultural, apenas escrevo livros para pôr as pessoas a pensar e a sentir. O TV Fest era um projeto imoral, congratulo-me por isso que tenha sido cancelado. O sol brilha mesmo para todos, antes, durante e depois da pandemia.