Gostava de conhecer o génio por detrás do rebranding da Miss Portugal, competição que tinha caído no esquecimento e que agora tem honras de telejornal. Desde 97, só ouvíamos falar em misses para recordar o desastre de Humberto Bernardo, que atribuiu erradamente o prémio que era de Icília Berenguel. Mas eis que em 2023 alguns dos maiores intelectuais da nossa praça, como Miguel Sousa Tavares, Joana Amaral Dias e Elma Aveiro, receberam com indignação a notícia da primeira mulher trans a ser coroada Miss Portugal. A primeira questão é: por que raio estamos a dar tanta atenção a uma brincadeira de crianças, um concurso de Barbies em que a Barbie mais linda leva para casa uma tiara? Percebo que seja o género de competição que as manas Aveiro gostam de acompanhar, mas não imaginava Miguel Sousa Tavares, com uma tacinha de pipocas, a desfrutar do certame das misses. Compreendo que, numa altura em que escala o conflito na Faixa de Gaza, saiba bem assistir a um evento onde só se deseja paz no mundo, não imaginei é que o comentador ficasse tão exaltado com a eleição da candidata trans como com um erro no VAR de um Benfica-Porto. Ainda assim, e mesmo sabendo do historial de divergências com Pinto da Costa, nunca vi Miguel Sousa Tavares pôr a questão nestes termos: “José Alberto Carvalho, casavas?”, uma pergunta que faria até algum sentido, sabendo nós da apetência do presidente do FC Porto para contrair matrimónios.
Joana Amaral Dias vê na eleição de Marina Machete um claro sinal do fim dos tempos, diz que pouco faltará para que as mulheres se resumam ao papel de parideiras, “isto enquanto não chegam os úteros artificiais, claro”, e assegura que os homens vão usurpar o nosso lugar em todas as áreas. Parece absurdo, mas é capaz de ter razão: é que Sousa Tavares veio tomar as dores das mulheres e reclamar o direito de elas vencerem aquele concurso. Apontou para Marina como quem aponta para um batoteiro, referindo-se aos tratamentos a que se submeteu como se fossem doping. Não só o regulamento do concurso (de repente, obrigaram-me a seguir também esta competição, que me interessa ainda menos do que o râguebi) contempla a hipótese de pessoas com o processo de transição concluído participarem, como não há nenhuma alínea que refira o impedimento de cirurgias plásticas. Descobrimos assim um lado ingénuo de Sousa Tavares, que sempre acreditou que aquelas mamas eram todas naturais. “Um homem ganhou o concurso de Miss Portugal”, declarou Joana Amaral Dias, outra das interessadas na matéria (o que até se percebe, porque tem atributos para vencer a prova de biquíni), “um homem disfarçado de mulher, ou mascarado, ou operado”. Está visto que o negacionismo de JAD não se ficou pelas vacinas contra a Covid-19, há outros avanços científicos nos quais não acredita, como as cirurgias de redesignação sexual. Mesmo com o processo concluído, Joana continua a ver aquelas pessoas como homens. Sousa Tavares, comparado com ela, parece progressista: já consegue referir-se a Marina como sendo uma mulher. E uma mulher com sorte, já que ele assegura que não se casará com ela.
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