Reza a lenda que em 1540 o viseense João Torto decidiu voar. Construiu duas asas, subiu à torre da Sé e atirou-se lá de cima. O voo durou muito menos do que o esperado: João Torto fez uma escala forçada, ao chocar de frente com a Capela de S. Luís. Parece-me que estamos perante o primeiro registo de turismo de luxo no nosso país. E, tal como aconteceu há dias com o submersível Titan, acabou mal. É também por isso que este é um tipo de turismo tão exclusivo: quase ninguém sabe dele, porque o boca-a-boca acaba por não funcionar. Há poucos clientes satisfeitos que sobrevivam para recomendar o serviço. O turismo espacial e o subaquático vieram revolucionar a ideia que tínhamos de férias. Para o comum mortal, as férias são uma oportunidade para relaxar. Mas… e alguém muito rico, que já está cansado de descansar!? O que há-de fazer para espairecer? Não vejo a agência Abreu preocupada com isto. É sempre assim, ninguém quer saber dos mais abastados. Se para nós o verão serve para desfrutar de pequenos luxos, como uma casa com piscina ou um hotel com excelente pequeno-almoço, para os ricos isso é só mais uma segunda-feira. Com muito dinheiro vem também muito tédio. O tempo que poupam ao não andar de transportes investem-no a pensar em que transportes esquisitos hão-de se enfiar. Helicóptero? Submarino? Foguetão? Até aqui o dinheiro servia para comprar espaço: mais espaço para esticar as pernas no avião, mais espaço para estender a toalha numa praia privada, mais espaço num quarto de hotel com sete divisões.
Agora o único espaço que interessa é o sideral. Tudo o que seja menos do que isso deixou de ser impressionante. Fartos de conforto, os mais ricos resolveram enfiar-se em cápsulas exíguas, sem casa de banho e onde só se pode ingerir comida liofilizada. Se a ideia era estar em sítios apertados e a comer pessimamente, mais valia terem ido acampar para um festival de verão. Não deixava de ser uma experiência nova para a fatia mais rica da população: comer fatias de pão Bimbo com atum em óleo, dormir numa tenda e fazer fila para um polibã comunitário. Não viam os destroços do Titanic mas viam muita gente arruinada, depois de converter toda a mesada em cerveja. O trágico desfecho do Titan trouxe uma estranha alegria a algumas pessoas. Será sentimento de vingança, por verificarem que os ricos morrem, como nós? Recomendo que refreiem os ânimos, porque, OK, os pobres dificilmente serão vítimas da excentricidade, mas continuam a ter de se preocupar com a fome, a violência, a malária… Acho que os ricos continuam na frente. Houve ainda outra facção que reclamou tempo de antena igual para os cinco milionários debaixo de água e as pessoas que morrem às centenas, todos os dias, em vários pontos do globo. Não vi as mesmas queixas quando seguimos a par e passo o caso do triatleta. Talvez tenham considerado que essas notícias eram resposta àquele repto do “dêem mais espaço às modalidades na imprensa, não pode ser só futebol”.
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