Este ano que passou foi muito bom, para mim. Fartei-me de poder dizer que não a coisas que não gosto de fazer. Basta invocar o calendário e o soldo é imediato, automático. Fica-se desobrigado de quase tudo o que transforma esta vida, por vezes, num penoso enfado. Além disso, lambuzei-me nas coisas que gosto de fazer, nas quais me sinto útil, fértil. Gravei, escrevi, regravei, apaguei, reescrevi. Passei todo o tempo com a minha família e para passar tempo com as coisas, pessoas, tarefas, ideias, pensamentos de que se gosta é preciso tempo. Quase não dei concertos. Por muito que eu goste, hoje em dia, de subir para um palco, sei que faço mais falta arregaçando as mangas para convergir na criação do que para (me) distrair com a recriação/recreação. Poder fazer reset a tudo é, pode ser, no meu caso deverá ser, uma verdadeira bênção. Não teria tido tempo para nada se não tivesse tido a bênção do tempo. Já andava há tempo demais sem tempo nenhum.
Claro que 2020 teve coisas menos boas, como o disco novo do Paul McCartney e o filme Soul, mas o famigerado Gregório assim estabeleceu, de janeiro a janeiro acontece de tudo, todos os anos são assim. Não gostei do disco do Paul McCartney porque amo essa coisa mágica, insondável e misteriosa vindo lá das altas esferas do além e que se chama Canção. E desprezo este McCartney III porque venero o seu autor como um dos mais altos emissários dessa forma de arte que, de tão singular, ou é fácil ou é impossível. O disco anuncia 11 canções mas só vem com uma, a última, que se trata de uma canção de 1992 enjeitada do álbum de então, Flaming Pie. A melhor (única) canção deste disco de 2020 não serviu para o disco de 1992.
Também não gostei do filme Soul, da Pixar, porque conclui sobre os propósitos da alma através de uma visão radicalmente oposta àquela que é a minha. Navegar é preciso, Viver não é preciso, assim entendiam os antigos argonautas e assim entendo eu. Esse lema é que é o meu Soul.
2020 entra na História como um ano “mau”. Mas tudo, absolutamente tudo, é o que é e simultaneamente o seu contrário. Em março, de pijama e esfregona da mão, enquanto lutava contra a entropia da vida doméstica entre gritos e queixas de crianças folgadas, desabafei com a minha mulher que ainda haveríamos de ter saudades disto tudo. E estava (e estou) a ser sincero.
(Crónica publicada na edição 1452 de 31 de dezembro)