Parece que o escritor Miguel Sousa Tavares e a pianista Maria João Pires querem emigrar. De vez. Pelo que percebi, há nos argumentos falta de mimo e lamentos sobre o País que temos e os seus atávicos provincianismos. Também insinuam perseguições e outras desilusões. Talvez queiram a fama, sem as amarguras e as invejas dela. E talvez considerem que Portugal é, de facto, um sítio mal frequentado. Sobretudo por portugueses.
Ao longo da História, várias figuras do universo das artes se acharam demasiado talentosos, importantes e decisivos para o futuro do País. O País que os pariu, ignorou-os, amiúde. Quando não os tratou mesmo mal. Saramago está hoje em Lanzarote porque um ajudante de ministro usou o critério mais infame – o gosto – para justificar uma decisão cultural e política. Muitos partiram, em silêncio e escorraçados, em nome da sua arte, inteligência e talento, e obtiveram no estrangeiro o reconhecimento que lhes faltava. Legítimo. E ainda bem.
Acontece, porém, que neste Portugal de emigração dolorosa, forçada e, por vezes, à molhada, esta ameaça recente de um adeus português em versão intelectual cheira a capricho. Parece um adeus porque sim. Ou porque sol. Sobretudo porque sol, cheira-me. Mas embrulhado num lamento e num queixume tipicamente português, claro.
Um compositor albanês cobiçado em várias partes do mundo disse-me um dia, à mesa de um café, em Tirana, que o facto do seu País estar, na prática, em guerra civil, era apenas mais um motivo para não o abandonar. E criticava o escritor Ismail Kadaré, antigo deputado na Assembleia Popular da ditadura de Enver Hoxha, por todos os dias dizer aos albaneses o que deviam ou não fazer, a partir da comodidade e do conforto…de Paris.
Houve quem não tivesse alternativa, noutros tempos.
O País salazarento tratou mal diversas figuras da intelectualidade portuguesa. Muitos exilaram-se. Outros ficaram, sofrendo a bom sofrer nos interrogatórios, nas cadeias, na censura. Outros, ainda, perderam-se pelo caminho, silenciados para sempre.
Sair do País por capricho, feitio ou amuos de momento é tão legítimo como abandoná-lo por motivos mais nobres. Mas a decência pede que se meçam as distâncias. E que se evite a postura, pouco convincente, de mal amados. As comparações, de resto, não resistem a uma análise fria dos factos.
No caso de Miguel Sousa Tavares e Maria João Pires, há um País que lhes reconhece talento e se orgulha do seu prestígio. Sem que nisto se convoquem critérios de gosto para nada. Sempre fizeram e disseram o que lhes deu na realíssima gana. Aqui e ali são ouvidos. Respeitados. Idolatrados, até. Se uma parte deste território os ignora e maltrata, é a vida. Nada que eles não soubessem, já.
Escritor e pianista podem ter muitos e bons argumentos para voar daqui para fora. Mas então aceitem que se lhes diga que isso é, no caso deles, o mais fácil, pois razões de queixa, convenhamos, têm poucas. Pelo menos, se comparadas com aqueles que não têm opção e sentem que dizer adeus é arrancar-lhes um braço.
Partem quase sempre num doloroso e ignorado silêncio. Sem sol, sem palavras, sem uma composição de despedida. Nunca escreverão um livro, nem nunca os veremos a levantar plateias. E mesmo assim, um dia talvez regressem sem um lamento contra este País padrasto a quem devem a sua vida madrasta. Tão silenciados por todos nós como quando partiram.