Os relatórios anuais da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância (CERI /ECRI)1 sinalizam que, nas últimas décadas, registou-se um forte aumento do discurso de ódio e dos crimes de ódio na Europa e Portugal não é exceção.
Segundo dados recolhidos pela agência Lusa, junto da PSP e GNR, o número de crimes de ódio em Portugal aumentou 38% em 2023, em comparação com 2022.
Ora, a Constituição da República Portuguesa repudia a discriminação, estabelecendo que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual (artigo 13.º CRP).
Por seu turno, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia impõe que todos os países tenham o objetivo de combater a discriminação em razão do sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou orientação sexual e que os seus territórios devem constituir um espaço de liberdade, segurança e justiça, no respeito dos direitos fundamentais (artigo 10.º e 67.º TFUE).
Crimes de ódio e discurso de ódio são penalmente punidos em Portugal, ficando, contudo, aquém do exigível.
O Código Penal estabelece que o crime de homicídio é punido com uma pena de 12 a 25 anos, caso seja, entre o mais, determinado por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela identidade de género da vítima, nos termos do artigo 132.º n.º 2, al. f), daquele diploma.
Também o crime de ofensa à integridade física simples vê a sua moldura penal agravada, passando a ser punido com pena até 4 anos de prisão, quando o agente pratique os factos determinado pela motivação supra referida naquele preceito (remetendo-se para o artigo 132.º n.º 2, al. f) do Código Penal).
Notamos, com moderado agrado, as várias alterações legislativas desta alínea, que, na sua redação inicial, conferida da Lei n.º 65/98, de 02.09, apenas se limitava ao ódio racial, religioso ou político. Depois, na redação introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04.09, passou a incluir a cor, origem étnica ou nacional, sexo e orientação sexual da vítima. Por fim, em 2014, aditou-se a identidade de género. Contudo, assinalamos a falta de abrangência de outras motivações discriminatórias.
Sob a epígrafe discriminação e incitamento ao ódio e à violência, o artigo 240.º do Código Penal prevê penas de 1 a 8 anos de prisão para quem fundar, desenvolver ou somente participar em organizações ou atividades de propaganda que incitem ou encorajem à discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas em razão da sua origem étnico-racial, origem nacional ou religiosa, cor, nacionalidade, ascendência, território de origem, religião, língua, sexo, orientação sexual, identidade ou expressão de género ou características sexuais, deficiência física ou psíquica.
Já quem, contra estes, praticar atos de violência, difamar, injuriar, ameaçar ou incitar à discriminação, é punido com uma pena de 6 meses a 5 anos. Contudo, estabeleceu-se que estas condutas só são punidas se forem praticadas publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação, nomeadamente através da apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade (artigo 240.º, n.º 2 do Código Penal).
Este é um artigo prolixo, de difícil aplicação prática e que deixa várias condutas por punir.
Claro que, para os crimes determinados por ódio em relação ao quais não está expressamente prevista uma agravação da conduta, o Tribunal deverá sempre ter em conta essa circunstância, quando determina a medida concreta da pena (artigo 71.º, n.º 1, al. c) do Código Penal). Mas não é suficiente.
Imagine-se os crimes de injúria ou ameaça motivados por ódio: se forem praticados apenas perante a vítima (ou seja, não sendo publicamente e pelas formas previstas no artigo 240.º), não existe qualquer agravamento da pena.
Entendemos que todos os crimes motivados por ódio devem ter as molduras penais agravadas. Para tal, é fundamental uma cláusula agravativa geral no nosso Código Penal, que não existe.
O aumento da utilização da internet e das redes sociais trouxe mais partilha do discurso de ódio através da palavra digital, facilitada pelo suposto anonimato e sentimento de impunidade associado.
Precisamos de um legislador mais atento e que adapte as normas penais e processuais penais aos casos da vida real.
Parece-nos evidente que o ódio mina as comunidades, enfraquecendo o respeito mútuo e o respeito pela diversidade em que assentam as sociedades pluralistas e democráticas. É premente uma resposta eficaz dos vários sistemas jurídico-penais de toda a União.
Prevemos um longo caminho a percorrer para melhorar e adaptar as normas, mas é crucial, desde já, divulgar a existência de disposições penais que punem condutas motivadas por ódio e encorajar as vítimas a participar os crimes às autoridades.
Não queremos ódio em Portugal!
Feliz Natal!
1 Órgão independente de monitoramento dos direitos humanos do Conselho da Europa, especializado no combate ao antissemitismo, discriminação, racismo, intolerância religiosa e xenofobia.
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