Nunca compreendi a ideia do cadeado como símbolo do amor. Essa ideia romântica do casal de namorados prender um cadeado na ponte e deitar a chave ao rio, não me faz sentido nenhum. O que me ocorre é a poluição do rio e da estrutura da ponte ou onde quer que se amarrem os ditos cadeados. Como é que um cadeado fechado pode ser um símbolo de amor? Um cadeado é um objecto que prende. E o amor não tem nada a ver com prisão, tudo pelo contrário. O amor é liberdade, é deixar o outro livre. Precisamos ser livres para tocar melhor no amor. Livres de preconceitos e prejuízos, livres para aceitar o outro sem o julgar, livres de crenças machistas de poder e controlo, livres do medo que traz insegurança. O medo é o oposto do amor. É preciso ser livre – ou seja, não vibrar no medo e na insegurança – para amar o outro sem o querer possuir, sem o querer controlar. Em vez de vamos prender um cadeado e selar para sempre o nosso amor, é mais o quero que seja uma escolha tua – isso de ficares comigo – não sei se é para sempre, mas que seja uma escolha livre e que se possa renovar todos os dias. Livres para poder escolher. Escolher ficar e escolher partir.
Mas há relações de onde não se consegue sair. Relações em que as pessoas estão presas uma à outra com cadeados invisíveis que já não conseguem ou não querem abrir.
Pensei nisto quando li o último romance do Sérgio Godinho, “Estocolmo”. Uma mulher aluga o sótão de sua casa a um jovem estudante e ele apaixona-se por ela. Envolvem-se numa relação de domínio com uma carga erótica tremenda. O domínio e o poder, o querer possuir o outro, são componentes fortes do erotismo desta mulher. Um dia ele acorda e está trancado no quarto. Foi ela que o trancou. Quere-o, e quer o desejo dele. Mas ele nem tenta fugir, porque se apaixona pela sequestradora.
À parte de tudo isto, também fiz algumas deambulações sobre a motivação do autor para criar esta história sobre uma relação que prende. Pensei no Sérgio Godinho escritor, que é também o “nosso” Sérgio Godinho das canções, músico e compositor que canta a Liberdade. Talvez por isso nos brinde no final do livro com uma curta mas magnífica história de amor vivida na proximidade da morte.
Quando li este romance pensei como somos todos feitos de polaridades, temos em nós o amor e o medo e tantos outros opostos e contradições. Temos todos pequenos cadeados dentro de nós que às vezes nos prendem a ideias antigas e velhas atitudes que nos impedem a mudança. A mudança traz sempre algum desconhecido. E o desconhecido pode ser assustador (mas também fascinante, são as tais contradições…).
Quantas vezes o desejo de possuir o outro aniquila o amor e a relação. O exemplo mais flagrante de relação como prisão é aquela em que existe violência doméstica e a vítima não consegue sair dela. Ele agride, mas não abandona. Esta vivência da garantia de não se ser abandonado num caldo de outros medos, faz a vítima ficar. O próprio comportamento do agressor esconde uma masculinidade insegura e por isso violentamente controlador e possessivo. Com menor frequência, os homens também são vítimas de agressoras e também eles não conseguem sair de relações abusivas. E existe na heterossexualidade como na homossexualidade.
Há pessoas que ficam na relação porque não são capazes de sair dela. Por medo de ficar sozinho, por falta de autonomia emocional ou financeira, por apego, hábito ou medo do desconhecido. Ali onde se está, não é bom mas, pelo menos é conhecido.
Há outras razões para se ficar preso na relação. Uma razão muito comum é a existência dos filhos, porque se acredita ser melhor para eles. O melhor para os filhos é terem os pais como modelos de dignidade, bem-estar em verdade, coragem e autonomia. Damos o exemplo com o que somos e o que fazemos com as nossas vidas.
Outra razão para a pessoa não consegui sair da relação é por medo da avaliação social, ou seja, o peso do que os outros dizem. Maldito peso. A pessoa não quer perder a imagem de um casamento estável perante a sociedade. É uma tamanha mentira e falta de liberdade, esmagada pelo peso da tradição, do conservadorismo e do catolicismo que um dia ditou que teria que ser para sempre, “até que a morte nos separe”.
No modelo de amor que defendo, um cadeado fechado simboliza tudo o que o amor não é. Amor é abertura, é abrir-se ao outro, mas diferenciando-se dele. Na relação tem que haver diferenciação. O amor não é fusão nem união total. São dois seres separados, individualizados, que escolhem investir e construir a relação. Se eu me fundir no outro, deixa de haver outro para amar.