A pandemia atinge-nos a todos individualmente, por isso se chama pandemia – do grego παν [pan = tudo/ todo(s)] + δήμος [demos = povo] – e também atinge todas as nossas relações. As condições decorrentes da pandemia são de diversa ordem e têm um impacto diferente dependendo do tipo de relação que temos. Pode ser um casamento de longa duração, uma união de facto curta, uma relação à distância, um amante, um amigo com benefícios. O impacto da pandemia é ainda diferente consoante as características intrínsecas à relação, ou seja, se é uma relação feliz ou infeliz, uma relação de paz ou violenta, de dependência, fusional, ou de grande autonomia para ambos, se é uma relação que já estava à beira da ruptura antes da pandemia, ou se era uma relação em que o casal precisava de tempo em privado. A diversidade é enorme, por isso, o impacto da pandemia verifica-se ao longo de um continuum que vai do muito negativo ao positivo.
Pode ser muito bom para aqueles que ansiavam por ter mais tempo juntos. Uma das coisas que esta pandemia impôs, foi o aumento da esfera privada, ao contrário do que se verificava na última década em que a esfera pública tomou a dianteira. E o amor e o sexo precisam de privado, de tempo e de quietude. O aumento da esfera privada possibilita um maior investimento no erotismo do casal. Obviamente que a presença dos filhos com as exigências que daí advêm perturba essa dimensão erótica mas, ainda assim, tais benefícios são possíveis para alguns casais e é como dizia Susan Sontag, as limitações trazem inspirações.
Por outro lado, esta obrigação de recolhimento à esfera privada pode ser dramática para os casais que já tinham relações difíceis, patológicas, violentas, ou à beira da ruptura. Ser obrigado a passar muito tempo com alguém que não se gosta traz muita infelicidade e mau estar. Para alguém insatisfeito na relação, estar privado de todos os escapes habitualmente usados para estar afastado do parceiro, pode ser desastroso, sejam esses escapes quais forem, desde o trabalho, aos hobbies ou outras obrigações inventadas para servir tal propósito. Nestes casos, o contexto da pandemia traz o confronto com o que realmente se quer e não se quer.
Por conseguinte, e muito óbvio, este confinamento é bom quando o privado é bom, e muito mau quando o privado é mau. Mas mesmo quando o espaço privado é um lugar onde se quer estar, este confinamento acrescenta alguns desafios. De repente ficaram misturados os vários papeis que desempenhamos na sociedade e na família. Aqui mesmo na sala da minha casa, eu sento-me para fazer consultas, tenho reuniões com investigadores de seis países, resolvo os problemas técnicos do computador do meu filho de 10 anos que está em aulas online, sou mãe, atendo o telefone a pessoas que precisam de mim, trato de absolutamente tudo o que diz respeito à vida doméstica, sou investigadora, cozinheira, mãe que brinca, mãe que cuida, tudo no mesmo espaço e quase ao mesmo tempo. Já recomecei esta crónica umas dez vezes e já fui interrompida mais de vinte. Estamos privados da esfera social e cultural face-to-face e a esfera doméstica amplificou-se enormemente (limpar, cozinhar, planear o que se cozinha, organizar, arrumar, cozinhar outra vez, voltar a aspirar).
Mas estas adversidades trazem novas possibilidades. Este abrandamento imposto faz-nos experimentar a possibilidade de outras maneiras de fazer a vida. Estamos a repensar o que cada um quer para si próprio e para as suas relações, estamos a definir prioridades. Fomos obrigados a tomar melhor conta da nossa saúde física e isso voltou-nos para nós próprios. Algumas pessoas sentem uma conexão com a vida que já não sentiam. Estamos a abrandar, estamos a tomar conta (de nós e de outros). E isso sabe bem.
Precisamos cuidar da nossa saúde física, mental e emocional e de ser conscientes e criativos para fazer escolhas para as nossas relações. É importante fazer essa revisão e observar velhos padrões que não servem. Há algumas ferramentas que podem ajudar – para mim, uma das mais importantes é aumentar a consciência. Alguns aspectos que podemos refletir para trazer mais luz às relações:
1 – Entrar em contacto com as próprias necessidades e expressá-las ao outro. É importante cada um dar-se conta do que precisa e fazer o outro saber dessas necessidades. A expressão traz saúde, em oposição à contenção que traz mal estar (e doença). Expressar o que se precisa com clareza. Um pedido explícito é muito melhor que o criticismo, ou esperar que o outro adivinhe. Quais são as minhas necessidades? O que estou eu a precisar? E ter em conta as necessidades do outro. Desenvolver uma atitude empática significa ser capaz de me colocar nos sapatos do outro. Quais podem ser as necessidades do meu companheiro?
2 – Aceder e identificar sentimentos ajuda à auto-regulação. Dar-se conta de como se sente. Alguns sentimentos/estados emocionais mais comuns como a tristeza, a raiva, desesperança, alegria, calma. Observar também os níveis de stress, que se traduzem por medo, ansiedade, irritabilidade, raiva, intolerância, cansaço, passividade. Se eu for mais consciente de como estou, posso escolher melhor como lidar com a experiência e o que fazer por mim.
3 – Manter paridade nas tarefas domésticas e no apoio aos filhos. Não pode haver um que assume e outro que abusa. E nenhum deve “pôr-se a jeito” para fazer mais do que o outro, assumindo que faz melhor, ou “ah, eu já estou mais habituada que ele…”, ou “fica mal feito e tenho que ir atrás fazer melhor”. O que fica mais sobrecarregado vai interiorizando uma zanga que se vai manifestando de várias maneiras contra o parceiro.
4 – Procurar o envolvimento sexual com uma motivação individual e não só relacional. Ou seja, perseguir o prazer sexual porque sim, e não fazer isso depender da relação. Porque se houver tensão na relação – o que é muito fácil acontecer –, isso vai perturbar o desejo/interesse sexual. A proposta é de uma mudança de paradigma, no sentido de encarar o sexo não só como uma fonte de prazer em si próprio, mas também como uma possibilidade de aliviar a tensão, relaxar, descansar e ajudar a adormecer.
5 – Definir espaços individuais e momentos temporais para se estar sozinho e separado do outro. É preciso ter a possibilidade de estar sozinho a fazer o que apetece durante um período limitado de tempo numa divisão da casa à porta fechada, ou na varanda, ou onde puder ser.
Nesta conjuntura e na maioria das famílias tradicionais, sejam elas pequenas ou numerosas, acredito infelizmente que a mulher é de novo mais penalizada que o homem, ao acumular mais tarefas e responsabilidades domésticas, familiares e profissionais. Conseguem homens e mulheres o mesmo nível de produtividade no teletrabalho e a mesma equanimidade no cuidado à família e à esfera doméstica? Não me levem a mal alguns homens que assumem mais tarefas de suporte dos filhos e da casa do que as companheiras porque continuam a ser uma minoria. O que aqui defendo é a relação paritária a vários níveis e também na esfera doméstica e familiar. Cada casal é único e não existem receitas, e mesmo que existissem, quem sou eu para saber o que é melhor para cada um. Cada pessoa faz a sua própria história.