Em 2016 Michelle Obama falou sobre menstruação num discurso em pleno Banco Mundial no âmbito do projeto da Casa Branca «Let Girls Learn». Perguntava: Porque é que há meninas em certas partes do mundo que continuam a faltar à escola por estarem com o período, e porque é que lhes fazem sentir que a menstruação e a sexualidade da mulher são coisas inaceitáveis?” A menstruação é um assunto que, ainda hoje no mundo ocidental, é tabu. A questão levantada por Michelle Obama em pleno Banco Mundial causou incómodo. Mas o período incomoda tão mais a nível pessoal e coletivo, que a pergunta da ex-primeira dama americana foi agora espelhada no documentário “Period. End of sentence“, galardoado com um Oscar. Contudo, não nos deixemos enganar. O problema que ele levanta e que diz respeito à sociedade indiana também acontece na Europa, e creio que é aqui que reside a universalidade deste filme.
Tive a oportunidade de vê-lo e considero-o informativo e inspirador. Informativo porque coloca-nos diante da realidade das raparigas e mulheres indianas que pelo facto de viverem sem acesso regular a produtos de higiene íntima, têm de faltar à escola, e vivem com condições de higiene duvidosas, e esta limitação atravessa-lhes a vida toda. Por outro lado é inspirador vermos como o negócio iniciado por um homem que concebeu uma máquina caseira de fazer pensos higiénicos permitiu que algumas mulheres passassem a ter trabalho a produzir e vender estes pensos, garantindo-lhes autonomia financeira, e, paralelamente, a venda feita por mulheres diretamente a outras mulheres a preços modestos é empoderador porque confere-lhes liberdade, capacidade de decisão, conforto e segurança. Um penso higiénico pode ser libertador e levar a uma revolução de hábitos, mostra-nos o filme. Sem pensos higiénicos, as mulheres recorrem ao uso de panos para a absorção do sangue. Uma realidade igual àquela vivida pela geração da minha mãe, das nossas avós, bisavós e de todas as nossas ancestrais. Mas os panos não servem para absorver em condições de higiene e segurança. Imaginemos então, o constrangimento e a limitação de movimentos, insegurança e vergonha pelos quais passaram todas as mulheres que viveram, e vivem, uma vida a usar trapos sobre trapos mês após mês.
Quantas raparigas e jovens mulheres deixam, ainda hoje, de ir à escola por não terem acesso a produtos de higiene menstrual? Ingenuamente poderemos pensar que este problema acontece somente nas sociedades de economias pouco desenvolvidas. Mas a ingenuidade termina quando lemos artigos e reportagens do jornal The Guardian, desde 2017, denunciando o ‘period poverty’ (em português ‘pobreza do período’) que leva cerca de 15% das raparigas do Reino Unido a faltarem à escola por não terem produtos de higiene para a menstruação, ou terem de improvisar usando papel de jornal, meias, t-shirts ou outras soluções não adequadas. Isto pode causar incredibilidade, mas é real e acontece agora. E pergunto-me se em Portugal esta situação não acontecerá da mesma forma. Se no Reino Unido acontece, por cá será diferente?
O movimento #FreePeriods, criado pela jovem Amika George, pretende que mais nenhuma rapariga no Reino Unido tenha de faltar à escola por estar com o período. Tal como acontece na Índia, na Europa acontece o mesmo. Para evitar este tipo de desigualdades, no ano passado o governo da Escócia tornou-se o primeiro país no mundo a garantir produtos de higiene menstruais gratuitos a todas as estudantes com base num programa orçado em 5,2 milhões de Libras.
Por cá, foi recentemente divulgada a iniciativa “Menstrual Equality for All” do Coletivo Feminista de Letras da Universidade do Porto que recolhe produtos de higiene feminina para serem distribuídos gratuitamente a partir de 8 de março, Dia das Mulheres, na Faculdade de Letras desta cidade. O coletivo defende, num dos posts do Facebook, que “ninguém deve ter que enfrentar a vergonha e o estigma que cercam a pobreza e a menstruação em geral, independentemente de idade ou género.”
Estamos em 2019 e a falta de literacia menstrual continua a acompanhar o crescimento das raparigas desde a adolescência até à vida adulta. O tabu em torno da menstruação permanece e os constrangimentos na vida de uma mulher pela falta de conhecimento, condições financeiras, sociais, de saneamento adequados, continuam a ser uma realidade. Mulher alguma deve ser obrigada a ficar em casa por não ter acesso a produtos de higiene íntima. Mulher alguma deve passar por esta limitação porque ela condiciona, baixa a autoestima e cria desigualdades sociais. Não tenho dúvidas de que a ideia ainda comum de que o período é uma maldição imposta sobre as mulheres vem destas limitações que continuam a não dignificar a vida das mulheres.
A menstruação é um ritual de passagem. É o primeiro ritual de passagem vivido pela mulher e deveria ser celebrado, em vez de silenciado ou envergonhado como acontece na Índia, no Reino Unido, em Portugal. E este silenciamento é fonte de problemas de ordem pessoal, social e ambiental.
Ainda hoje as raparigas e as mulheres falam sobre o período ao ouvido umas das outras, como se o assunto fosse vergonhoso, estranho ou inconveniente. A literacia menstrual deveria ser ensinada em casa e nas escolas com naturalidade, já que a menstruação é um processo fisiológico que acompanha as mulheres durante a maior parte das suas vidas e é um parâmetro de aferição da condição de saúde da mulher. Porquê esconder um ciclo natural que acontece todos os meses e está relacionado com os ciclos da natureza e os ciclos da lua? Ele é natural.
Mas para além das consequências negativas na vida profissional e pessoal, existem ainda outras consequências cujo impacto se reflete no ambiente. Enquanto o documentário mostrou as lixeiras acumuladas aqui e ali nos bairros na Índia para onde as mulheres mandam os trapos do período, deixados ao ar livre, no mundo ocidental são inúmeros os aplicadores de tampões que as mulheres mandam pela sanita abaixo em vez de os colocarem no lixo ou junto dos plásticos para reciclar. Parece impossível isto acontecer em sociedades desenvolvidas, mas é uma realidade. A bióloga portuguesa Ana Pêgo anunciou recentemente estar a iniciar um novo projeto artístico e de intervenção feito a partir da recolha de aplicadores de tampões. São muitos os que flutuam no mar e dão à costa. Não há razões nem desculpas para as mulheres deitarem pensos, tampões, invólucros e aplicadores pela sanita. Trata-se de um comportamento não sustentável nem consciente, quando já existem soluções ecológicas no mercado como os copos menstruais ou os pensos de pano reutilizáveis.
Se calhar foi preciso termos um documentário sobre a menstruação na Índia para as mulheres no ocidente olharem para o período como um assunto elementar e natural, que precisa ser desbloqueado. Antevemos, através deste filme premiado, a queda de um tabu? Acredito e espero que sim. Promovam-se discussões e fóruns sobre o período, façam-se filmes e canções sobre o sangue menstrual, o mais rico biofertilizante que a terra pode receber. E que o documentário traga com ele mais curiosidade e interesse, espaço para discussão e sabedoria partilhada sobre um assunto que para muitas mulheres ainda é difícil de entender, aceitar e resolver no quotidiano. Esse espaço faz falta.