Os primeiros minutos do filme «Modern Times», de 1936, com Charlie Chaplin, são uma paródia ao trabalho sistematizado das linhas de montagem de fábricas de produção em série do início do século passado que requeriam muita mão-de-obra para ações repetitivas pesadas ou minuciosas. Charlot era um dos muitos trabalhadores de uma fábrica e no filme goza com a repetitividade, a rapidez que a chefia imprime constantemente ao trabalho, e a eficiência humana que não pode falhar. Mesmo quando se afasta da linha de montagem os seus braços continuam a reproduzir os movimentos exigidos pela função e esperneia para tentar voltar à normalidade. A espontaneidade do corpo fica condicionada pela repetição de movimentos prolongada no tempo. E a paródia vai aumentando nas cenas seguintes. Decide ir à casa de banho fumar um cigarro mas o patrão tudo vê e tudo controla através dos ecrãs de vídeo vigilância. Charlot leva um berro do patrão, que está a vê-lo à distância, e rapidamente regressa ao trabalho com o cigarro meio fumado. Pica o ponto e entra na linha de montagem. O filme questionava o esforço hercúleo feito pelos trabalhadores aos quais tudo era exigido: rapidez, agilidade, repetição, perfeição, trabalho contínuo sem cansaço, controlo dos tempos de intervalo, etc. O ser humano era colocado a fazer trabalho maquinal e a ter de comportar-se como um robô. A indústria assim o exigia. E ainda que na época a ficção científica fosse uma realidade através das pulp magazines e do cinema, de onde saíram grandes referências como o filme «Metropolis» de Fritz Lang em 1927, a passagem deste tipo de ficção à realidade começa a ganhar mais consistência recentemente e a aproximar-se das novelas onde máquinas e robôs dominariam os humanos e os estilos de vida como os temos conhecido até agora. E assim a robotização e a inteligência artificial ganham espaço e afastam-se cada vez mais da ficção.
Há dias, no encontro Health Intelligent Talks & Trends, o futurologista em saúde Bertalan Meskó falava entusiasmado da democratização da prestação de cuidados de saúde com a introdução da medicina digital que, segundo a sua opinião, permitirá que os cuidados sejam universais, bastante mais baratos, e que o cidadão possa registar os ritmos e sinais da sua condição de saúde diariamente, se o quiser, criando uma base de dados regular que dará ao médico um panorama real para uma avaliação que permita atuar em conformidade e antecipar doenças. Meskó defende que a tecnologia é feita para conectar mais as pessoas, e não o oposto, e fala dos drones que nos dias de hoje largam medicamentos em zonas remotas do planeta que necessitam de intervenção rápida e às quais um automóvel, transportando os mesmos medicamentos, demoraria dias ou semanas a chegar. É um exemplo de como as máquinas inteligentes podem ser preparadas para servir a humanidade.
A internet das coisas, a robotização de trabalhos rotineiros e sistematizados, as soluções de inteligência artificial e outras novidades que estão a ser criadas à velocidade da luz passarão a fazer parte do nosso quotidiano dentro em breve. E muitas já fazem. Segundo Gerd Leonhard, CEO da The Futures Agency que estará em Portugal no dia 17 para uma conferência, estas mudanças poderão sentir-se já nos próximos anos de maneira inequívoca. As sociedades economicamente emancipadas têm vindo a discutir estes assuntos nos últimos anos por ser fundamental percebermos desde já o que aí vem e procurar soluções de adaptação adequadas e concertadas nas áreas da educação, dos negócios, da saúde, etc. Portugal não é exceção e tem vindo a acolher e organizar encontros e cimeiras que debatem o futuro. A próxima acontece nesta terça-feira dia 17. A Business Transformation Summit convidou como oradores o estratega do futuro Gerd Leonhard, a especialista em inteligência artificial Manuela Veloso, e ainda Laura Overton, especialista em inovação na educação. Ao contrário do filme «Modern Times» onde as pessoas trabalhavam que nem máquinas, hoje a previsão diz que os robôs e as soluções de inteligência artificial virão ocupar muitas das funções de trabalho repetitivo, entre outras funções laborais. As máquinas vão ser nossas colegas de trabalho, irão substituir-nos, poderão até ser chefes de serviço de outras máquinas, ou quem sabe, de seres humanos. Não sabemos ao certo, mas tal como na ficção científica, tudo é possível.
Apesar dos debates feitos, teremos resistência, bom senso e sapiência para o que aí vem? Estamos perante a queda de um paradigma cultural, social e económico, e a entrar numa revolução cultural sem precedentes para a qual, parece-me, ninguém está preparado apesar das finas previsões dos especialistas. Gerd Leonhard, no seu recente livro já traduzido para português «Tecnologia versus Humanidade – o confronto futuro entre a máquina e o homem», diz, relativamente às dez mega mudanças que aí vêm que “…Não se trata de processos evolutivos lentos aos quais tenhamos tempo de nos adaptar e de integrar. Não. Esses processos irão desencadear um maremoto de ruturas e mudanças potencialmente equivalente a uma extinção em massa da atual infra-estrutura global de comércio.” Humildemente arrisco acrescentar que apesar de algumas tendências ainda chegarem a Portugal com anos de atraso, desta vez teremos de meter pilhas Duracell se quisermos acompanhar o ritmo da mudança.
Ninguém nos disse que o futuro era isto. E agora? Entramos em pânico, fugimos para uma ilha remota ou lidamos com a revolução com resiliência? Creio que a decisão mais acertada para já é relaxar, tomar um copo de vinho e ver filmes visionários e divertidos como o «Metropolis» e o «Modern Times» para uma mentalização suave. Ou não fossem os portugueses mestres na arte de saber viver as coisas simples e o lado humano da vida. Mesmo que haja máquinas a trabalhar por nós, viagens regulares a Marte e chips implantados debaixo da pele, sermos humanos e podermos exercer o livre arbítrio deverá ser sempre a primeira e última prioridade.