Há um exemplo de Maurice Merleau-Ponty, o grande filósofo francês do Século XX, que aqui cito e adapto, para melhor se compreender a essência do delírio.
Imaginemos um homem a andar numa praça que ouve um cão a ladrar nas suas costas. Pode de imediato pensar que o cão está a ladrar para si. Contudo olha para trás e verifica que o cão estava a ladrar porque estava a brincar com o seu dono. Este homem fica tranquilo e segue o seu caminho.
Imaginemos a mesma situação mas com um homem perturbado mentalmente. Ouve um cão a ladrar nas suas costas e pensa que o cão está a ladrar para si. Olhou para trás e viu o dono do cão a atirar uma bola para longe que o cão imediatamente correu para apanhar. Este segundo homem pensa: “Aquele tipo está a atiçar o cão contra mim”.
Com este exemplo concreto percebemos perfeitamente a diferença entre uma mente saudável (no 1º caso) e uma mente perturbada (no 2º caso). No primeiro caso a hipótese do cão estar a ladrar para o sujeito foi invalidada quando este procurou verificá-la confrontando-a com a realidade. O sujeito olhou para trás viu um cão a brincar com uma bola que o dono lhe atirava e pensou: afinal o cão está a brincar com o dono. Ainda neste exemplo constata-se que a realidade se impôs à hipótese inicial e esta foi invalidada.
No segundo caso, pelo contrário, a verificação pela realidade não se sobrepôs à hipótese inicial, que não só se manteve como se intensificou. O segundo sujeito, a vivenciar uma nova relação com o mundo acredita, crê e não tem dúvidas que o mundo está contra ele e, por isso, a sua crença está acima da realidade.
É a esta crença não verificável ou falsificável pela realidade, imune a qualquer argumentação que se dá o nome de delírio. Neste exemplo “o mundo contra mim”, o delírio é paranoide (persecutório).
O ser humano está imerso em múltiplas crenças que partilha em grupos mais ou menos alargados. São crenças de natureza cultural, religiosa, espiritual, místicas, etc. Na verdade, o ser humano necessita de acreditar. Todavia há umadiferença entre acreditar mas poder colocar em dúvida o que se crê e acreditar sem ter a possibilidade de colocar em dúvida o que se crê. Até o crente mais fanático de uma religião, se for saudável, tem momentos de dúvida e sobressalto. Como nos ensinou Bento XVI, a fé e a razão juntam-se para que acreditemos em Deus. Aqui a razão, entendo eu, funciona na discussão e superação da dúvida para fundamentar a crença.
Voltando à questão essencial do delírio e à impossibilidade de duvidar, devemos colocar um segundo elemento também essencial que é a ausência de consciência sobre a anomalia delirante. A pessoa que delira não tem consciência que a sua mente está perturbada. Até pelo contrário defende a sua ideia delirante nem que seja em oposição ao mundo inteiro – “Eu estou certo, eles estão enganados”.
Se uma pessoa com uma ideia delirante qualquer, analisasse o exemplo desta crónica também concordaria que o sujeito do segundo caso estava mentalmente perturbado. No entanto ele próprio confrontado na sua ideia delirante seria incapaz de a reconhecer como anómala.
O delírio é assim a essência da patologia mental dita psicótica, é o paradigma do que o senso comum qualifica como “loucura”, é a mente perturbada na relação com o mundo e com os outros, é a fronteira que se ultrapassou, ou como os Pink Floyd nos legaram, o lado escuro da lua.
O ser humano dotado de razão usa-a para duvidar, questionar, indagar, mesmo as hipóteses que se apresentam como evidentes. A razão é assim um instrumento de conhecimento. Na mente perturbada a razão não procura conhecer, porque já conhece à partida e por isso não tem dinâmica, nem dialéctica. A razão fica congelada, porque presa no seu delírio. A mente perturbada é por isto “inimiga” do conhecimento.
O delírio na psiquiatria como atrás foi dito é sinónimo de psicose aparecendo com diversas facetas na Esquizofrenia, na Doença Bipolar grave, nas experiências psicóticas por drogas, nas Paranóias, nos delírios de ciúme, etc. É fonte de sofrimento próprio e na maioria das vezes também dos outros que o rodeiam.
Mas, apesar de toda a evolução do conhecimento, o delírio e a ausência de consciência que o acompanha são ainda fonte de perplexidade e mistério.
Sem qualquer dúvida ainda há um longo caminho a percorrer no conhecimento da mente humana e das suas perturbações.